segunda-feira, 24 de agosto de 2015

MARY DEL PRIORE, HISTORIADORA, TOMA POSSE NA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS COM UM DISCURSO NO MAIS ALTO PADRÃO ENSAÍSTICO.

Discurso Posse ACL

  
Caríssimos membros da muito honrada Academia Carioca de Letras, colega Sonia Salles, Senhores e Senhoras, amigos queridos, meus adorados familiares, é com imenso prazer que essa historiadora lhes fala. Pois, além do prazer de, doravante, integrar esta Casa, existe também a admiração pela cultura dos confrades, por seu profundo sentido das realidades humanas, cuja riqueza se lê através do percurso e das convicções de cada um. Convicções plenamente vividas nesta Academia Carioca, Casa que oferece aos seus membros um pacto com o espírito e com as letras.  
Prazer, entusiasmo e encanto me trazem aqui, pois por décadas, tenho me perguntado sobre as afinidades que ligam Letras e História, Literatura e Memória. Estar sob esse teto, é poder, graças ao convívio com os confrades e ao que aprenderei com eles, trazer algumas respostas a essa questão.
Porém, pertencer à Casa, estar entre os seus membros, honrá-los e prestigiá-los é, também, lembrar. Lembrar, enfim, os que não estão mais. Dar-lhes vida, fazê-los presentes nesta tarde, quitar o dever de reconhecimento em relação a eles. Vemos aí a função mesma da história: trazer o passado ao presente. Homenageio-os, então, ainda que de forma modesta, pois haveria muito a dizer dos grandes nomes que foram meus predecessores na cadeira 32.
            Começarei por José Gabriel Lemos Brito, historiador e autor de uma biografia de Frei Caneca e de uma História Econômica do Brasil Colonial. E Mário da Veiga Cabral, professor do Instituto de Engenharia e Instituto de Educação e autor de vasta e duradoura obra didática nas áreas de Geografia e História. Ambos, sinceros conhecedores da vida econômica e das idéias políticas, foram mestres na ciência histórica por meio da qual tentaram capturar a profundidade do passado, além de se engajar na batalha por melhorias no ensino da disciplina. A busca da palavra justa, um consenso dos fatos político-militares, o rigor nas datações, o pontilhismo cronológico fizeram de suas obras um retrato das ciências humanas, na primeira metade do século XX. Ciências preocupadas, então, com os fatos significativos do passado da nação.
Também ocupante da mesma cadeira foi Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, jurista, filósofo, matemático, escritor, senhor de uma carreira brilhante, que despontou aos dezesseis anos na Universidade de Oxford e culminou com uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Senhor de trezentas obras traduzidas no exterior, foi do engenho de Mutange, no Ceará, para postos diplomáticos no exterior. Seu ofício não foi mera profissão. Mas, um modo de vida, um estado de espírito, e, por que não?  Foi uma visão de mundo. Intelectual brilhante, familiarizado com os autores europeus, em especial os alemães, o escritor e jurisconsulto Pontes de Miranda difundiu novos métodos e concepções do Direito no Brasil. Sua obra, pioneira em diversos setores, se distribui por quase todos os campos da ciência jurídica, do Direito Constitucional ao Civil, do Processual ao Comercial.
E, finalmente, Dahas Zarur, jornalista, autor de vários livros sobre a Santa Casa de Misericórdia, instituição fundada, em 1582, por Padre Anchieta, teto que acolheu por séculos nossas crianças “enjeitadas” em sua Roda de Expostos. Misericórdia da qual Zarur foi Provedor por décadas a frente de gestões apaixonadas e controvertidas. Para alegria de todos os que prezam a história do Rio de Janeiro, a Santa Casa tem, agora, como diretora cultural, minha querida professora Maria de Lourdes Horta, irmã do saudoso Luiz Paulo Horta.
Todos eles ocupantes da cadeira 32 fundada por Mário Cochrane de Alencar advogado, poeta, jornalista, contista e romancista brasileiro. Filho de José de Alencar, protegido e amigo de Machado de Assis com quem mantinha relações filiais, - como analisou em ensaio sensível e recente Antônio Carlos Secchin – e, finalmente, membro da Academia Brasileira de Letras, Mário de Alencar, talvez seja quem melhor represente o espírito humanista que deve presidir as academias. O compromisso do intelectual, do acadêmico com o país das Letras, com a defesa de valores desinteressados como a Liberdade, a Justiça ou a Razão, com projetos coletivos que beneficiem o livro e a leitura, foram o seu. Compromisso, aliás, que fez Mario de Alencar lutar incansavelmente para que o Silogeu Brasileiro, atual Academia Brasileira de Letras, ganhasse um teto. O curioso é que laços familiares me unem a essa cadeira, pois, ainda venho a ser parente de Mário Cochrane de Alencar. Minha avó, Lucy Cochrane Simonsen, assim como Roberto Simonsen, seu irmão, eram filhos de Robertina da Gama Cochrane, - de casada, Simonsen -, filha de Wallace da Gama Cochrane, meio irmão de Georgina Augusta de Alencar, mãe de Mário.
Laços de família à parte, a lição dos antecessores desta cadeira, senhoras e senhores, é a de investir sempre numa união útil a todos. União que seja um tesouro de sensibilidades, de experiências e preocupações comuns. E, sobretudo, união de diferenças enriquecedoras. O poeta Paul Valéry, lido por tantos de nós, já sublinhara em relação à Academia Francesa: “Num mundo instável, onde o poder político se encadeia ao absurdo e ao imediatismo, além de engajado na luta perpétua por sua própria existência, a resistência à pressa, à confusão, à versatilidade das paixões reais ou simuladas é indispensável. Pensemos numa ilha – a Academia - onde se conservaria o melhor da cultura!”.
Ilha, “insula”, palavra que remete ao isolamento. Mas, no caso seria apenas um empréstimo literário de Valéry, pois as atuais academias, outrora “Societés Savantes”, menos e menos se parecem com suas avós, fundadas entre os séculos XVII e XVIII. Hoje, elas caminham para uma participação maior e melhor na sociedade. A busca de sinergia entre escritores e leitores, o apagamento entre a língua erudita e a popular, o entusiasmo pela palavra, no papel ou na tela, no livro ou no blog, constituem uma agenda nova para todos que desejamos trabalhar por um país letrado.
Integrada a essa proposta, ou seja, a da construção de um Brasil que preze seus escritores, é que me pergunto se o arquipélago não seria uma definição melhor para determinar a multiplicidade de tendências – as tais “diferenças enriquecedoras” as quais me referi – que, atualmente, vemos se consolidar nas variadas academias. E nessa luta pela valorização de individualidades, de singularidades capazes de criar um novo espaço de autores, escritores, pesquisadores, porque não discutir, nessa Casa, uma Casa das Letras, a possibilidade de a história ser uma forma de literatura contemporânea?
Digo isso, pois é preciso conhecer a história da disciplina histórica para saber que literatura e história já andaram de mãos bem dadas, por muito tempo. Sem dúvida fronteiras são necessárias. A história não é, e jamais será ficção, fábula, delírio ou cópia. A distinção que Aristóteles opera entre poesia e história, no capítulo 9 de sua Poética é, deste ponto de vista, fundadora.
Mas esse distanciamento desejada pelo filósofo, não condena o historiador a ser um órfão da poïesis. A sua inventividade nos arquivos, o seu engenho no emprego de métodos e conceitos, a sua criatividade no uso da narrativa ou do léxico têm, em si, um sentido forte.  Ela – a inventividade, na ficção ou no discurso histórico - é um ato criador. E sabemos: o historiador trabalha, conjugando uma produção de conhecimentos, uma poética do saber, mas, também, uma estética. E, portanto, o problema, como sugeriu Jacques Ranciére, não é “saber se o historiador deve ou não fazer literatura. Mas qual literatura ele faz”[1]. Poderíamos dizer a mesma coisa, do escritor em relação às Ciências Sociais: o problema não é saber se ele fala do real. Mas se, por meio de sua escrita, ele oferece condições de compreender a realidade.
Penso que o importante é não ter mais constrangimentos. É ousar. É experimentar coletivamente. É imaginar uma História que cative, que emocione, pois, então, ela será capaz de demonstrar fatos passados e desvelar a vida dos ancestrais de tantos brasileiros que ainda desconhecem suas raízes. Que ignoram sua identidade. Que antipatizam com a vida dos ancestrais. Essa história hibrida existe e é chamada por alguns historiadores de creative-history[2].
Mas meu papel aqui, hoje, é cansá-los um pouquinho, e vou fazê-lo lembrando que, desde a Antiguidade, se tenta extrair da história as suas bordas literárias. De Heródoto a Tucídides, os debates sobre, se o historiador poderia embelezar, idealizar ou caricaturizar, existem. A história, então, se misturava à poesia, ao mito, ao elogio, à grandiloqüência. Veja-se Heródoto, Tácito e Tito Lívio, divididos entre o panegírico e a verdade. Como que antecipando o relativismo em que vivemos, eles intuíam que a verdade absoluta e objetiva não existe. Existe, sim, aquela que é construída subjetivamente pelo discurso de cada um.
 Eis porque, para muitos, as formas literárias seriam uma ameaça. A severidade deveria estar presente nas genealogias bíblicas, nos nomes de reis gravados nas acrópoles, nas efemérides dos pontífices. Houve sempre quem discordasse. Cícero por exemplo. Para ele, o simples narrator, não bastava. O exornator – o que adorna – deveria exibir todas as qualidades da sua escrita.
 Mais tarde, na época clássica, quando surgem os primeiros tratados sobre o que seria a matéria histórica, o pregador e ensaísta Pierre le Moyne no seu De l´histoire anunciava que “era preciso ser poeta para ser historiador”. Na contramão, seu contemporâneo, Jean Bodin, pregava a importância da “historia nuda”: despida, sóbria, simples direta”. O debate prosseguia.
Até o século XVII, momento do nascimento das Belles-Lettres, ou da chamada República das Letras, uma comunidade abstrata reunia poetas, filósofos, moralistas, historiadores e até astrônomos[i]. Com a proliferação de salões literários, academias, mecenatos, da imprensa e, sobretudo, da codificação de uma linguagem definindo o que fosse o “homem de letras”, o historiador se tornava, por osmose, também um escritor e vice-versa. Um era o outro. Os romances de Walter Scott demonstram que o mesmo escritor que idealizava cavaleiros e castelos, usava, como qualquer historiador, as informações extraídas das crônicas medievais, conservadas em velhas bibliotecas ou arquivos.
Outro exemplo importante da afinidade entre literatura e história, temos em Chateubriand. De seu Ensaio sobre as Revoluções ao Memórias de Além-Túmulo, ele fez de tudo: história de sua família, autobiografia, história do Antigo Regime, da Revolução de 1789 e de Napoleão. No início do século XIX, os historiadores-escritores inspiraram uma geração de escritores-historiadores com seus temas, cronologias e narrativas. O Ivanhoé Walter Scott foi seguido por Notre Dame de Paris, de Victor Hugo, de Os Chouans de Balzac e dos romances de capa e espada de Alexandre Dumas.
Alguns como Alfred de Vigny, e entre nós, José de Alencar, tinham o zelo de citar ao pé da página, os documentos históricos dos quais extraíam informações para sua ficção. O uso de mapas antigos, imagens, descrições, diálogos, detalhes e até viagens – como a que fez Chateubriand à Itália para escrever Os mártires - “vivificavam a história”. Lembro aqui que, décadas mais tarde, Marguerite Yourcenar fez a mesma viagem para escrever seu Memórias de Adriano. Tal conjunto de fontes documentais sempre permitiu ao leitor acreditar que, apesar da distância, os homens do passado eram dotados de vida e habitados por paixões. Torneios, raptos, festas e crimes faziam de duques, princesas e reis, contemporâneos dos leitores, tão bem descritos, vivos ou “ressuscitados” como diria o historiador Jules Michelet.
 Reações, sim. Na universidade de Leipzig, Ranke recusava qualquer linguagem poética e brandia o que denominava “imparcialidade”. Segundo o mesmo autor, dever-se-ia fazer história “cheio de calma soberana”. Conseguiu? Não, totalmente. Quando teve que descrever a bravura do rei francês Francisco I, na batalha de Milão, Ranke usou os mesmos artifícios que criticara: metáforas, exortações, e até o “Quem sabe se...”, o primórdio da história contrafactual que começa sempre com o “Se’: Se Getúlio não tivesse se suicidado? Se tivéssemos perdido a Guerra do Paraguai? Se Dilma não tivesse vencido? Ora, exatamente por permitir a conversa entre literatura e história, ficção e fatos é que, junto com Michelet e Macaulay, Ranke vendia tantos livros quanto hoje são vendidos best-sellers que tratam da II Guerra Mundial![ii]
            Usando as mesmas linhas cruzadas entre ficção e história, Balzac fez pela França o que nenhum historiador na época conseguiu fazer para a história do Egito ou de Roma: ele pesquisou, registrou, explicou estabeleceu a significação das ações e dos protagonistas. No século XIX, tratou de questões que a historiografia foi buscar apenas, em meados do século XX: a evolução social, suas hierarquias, práticas e tensões entre grupos, as idades da vida, a moradia, os hábitos, o lazer, o sexo, enfim: um programa de história social. Com o agravante de que, aos olhos do leitor, seus romances são mais autênticos, mais demonstrativos, resumindo, mais verdadeiros do que qualquer tese universitária. A Comédia Humana, com seus vários personagens e cenários, tornou mais visível do que nenhuma outra obra, a sociedade pós-revolucionária francesa.
A agenda dos escritores realistas – no Brasil temos o maior representante em Machado de Assis – não era muito diversa de um historiador, hoje: vontade de descrever a realidade sem idealizá-la, interesse pela vida do povo e as coisas do cotidiano, evocação dos problemas sociais da época. Mas esse excesso de realidade não seria daninho?  Flaubert em carta a Louise Collet profetizava que “a literatura iria tomar os contornos da ciência” com seu interesse pelo real, pelo vivido ou pelo quase jornalístico. [iii] Tinha razão. Para escrever Germinal, Emile Zola assistiu a reuniões sindicais, desceu nas minas de carvão e estudou obras de grandes alienistas para reproduzir os sintomas de doenças profissionais que atingiam os mineiros. Nos Estados Unidos, John Steinbeck visitou e percorreu os campos de imigrantes da Califórnia para escrever As vinhas da ira. As Letras se deixavam impregnar, mais e mais, de Ciências.
A partir de 1870, também os historiadores adotaram “um ponto de vista estritamente científico” – como resumiu um deles, o positivista Gabriel Monod[iv]. Mas o problema prosseguia: quando havia literatura demais, a história desaparecia. Quando havia de menos, não sobrava nada. Se, durante o Romantismo, a história vivia em osmose com a literatura, à medida que a disciplina se institucionalizava, nas universidades, nas cátedras, nos concursos, esse convívio, antes visto como benéfico, passou a ser considerado muito narrativo, lírico e até patético – pateticismo do qual foi acusado injustamente, por exemplo, Michelet. A regra, então, foi fazer do historiador uma criatura independente, descolada do homem de letras. Doravante, sem emoção, sem tendências e sem aparatos, a História convergiria para a história-ciência.
O cientificismo e o positivismo, presentes na literatura realista, impunham a objetividade como regra. O importante era buscar o fato. Descrevê-lo como se o historiador estivesse em cena, com lupa e microscópio à mão, e, sobretudo, com linguagem comedida e policiada por métodos e teorias. Enquanto a literatura se libertava, a história se prendia mais e mais às corporações, aos cargos na carreira, aos arquivos, construindo zelosamente as bases da chamada Escola Metódica.
 É nesse momento que observamos a ruptura, ruptura voluntarista e imposta por um determinado grupo de historiadores-funcionários-universitários, entre o historiador - escravo do real, da seriedade, da ciência. E o escritor, senhor da arte da imaginação e da subjetividade.
Não há tempo aqui para descrever o peso da escola Metódica na consolidação de textos pesados, nos quais o “Nós” majestático substituía o Eu narrador. Em que notas de rodapé tomavam páginas inteiras e a obrigação de debates teóricos empestava os livros de História.  A partir dos anos 60, o marxismo fez o resto: a camisa de força das “lutas de classe”, do predomínio das interpretações econômicas sobre o cultural ou o social, das dezenas de anexos com dados quantitativos, enterrou definitivamente a possibilidade de uma narrativa sedutora. Eric Hobsbaw, historiador marxista inglês, talvez seja a única exceção a essa maré de textos que se lê com o mesmo cansaço com que se escalam montanhas. O pior era o sentimento de transgressão ou lesa-cientificidade que se tinha ao romper com tais pressupostos.
O curioso, porém, é que mesmo autores ditos marxistas como Fernand Braudel, escreveram clássicos como O Mediterrâneo no tempo de Felipe II, verdadeiro afresco com intrigas, ações, um herói, (o próprio Mediterrâneo) e metáforas as mais variadas. Ou, outro exemplo, Georges Duby que ao publicar seu Guilherme, o marechal, teve a coragem de dizer que escreveu um livro que ele gostaria que se lesse “como um romance de capa e espada”.
Ao final dos anos 80, vários historiadores se insurgiram contra a servidão voluntária, a obediência cega aos métodos marxistas e quantitativistas que vicejavam nas universidades. Lawrence Stone, Georges Duby, Nathalie Davies entre outros resolveram dar prazer ao leitor. Resolveram dar prazer, mas, também, ter prazer na redação da pesquisa[3]. O resto? O resto se seguiria com as regras do ofício: rigor, honestidade, ritmo. A moda das biografias, a necessidade das descrições no lugar das explicações, as “artes de contar” esmagaram a obsessão com as estruturas. Historiadores do porte de Michel de Certeau, Paul Veyne, Paul Ricoeur[v], entre outros, demonstraram, cada qual com seus métodos, que a história tinha necessidade de intrigas, de figuras de estilo, de cenários. Veyne chega a dizer que não há “diferença entre história e ficção” ou que “a história é um romance verdadeiro”.  Enfim, os debates são profundos e não vou submergi-los com eles.
Mas eles desembocaram numa mudança. E o que interessa, hoje, é discutir melhor o papel e a definição da “não ficção” – pois a história é assim considerada. Ela está num mesmo saco, junto com as reportagens, os guias de viagem, as autobiografias e coletâneas jornalísticas. A história, como os demais textos, tem uma função cognitiva – ela informa, explica, interpreta, ensina, transmite. Mas ela não é só uma coleta de fatos. É, sim, uma forma de educação cidadã. Ela pode atuar na praça pública, pois participou das lutas pela liberdade e pelas verdades, lutas que atravessaram o século XX. Ela serve para combater a indiferença, a intolerância, a amnésia. E para fazer a História avançar no século XXI, não se trata mais de repetir Walter Scott ou Balzac. Não se trata de renunciar a todas as regras do ofício. Não se trata, tampouco, de reconciliar história e literatura, um casal que tenta se divorciar a tempos. Mas, sim, de favorecer o encontro entre método e narrativa.
Senhoras e senhores. A Academia Carioca de Letras será o espaço privilegiado, dentro do qual e na troca com os confrades, poderei elaborar, não mais uma história que se “fará literária” pelo empréstimo de lantejoulas ou plumas. Mas, uma história mais vibrante, sensível, que indague, investigue com método, rigorosa, sendo igualmente mais reflexiva e honesta com ela mesma.
Eu comecei mencionando as ilhas de excelência que foram e são as Academias. Gostaria de retomar a imagem para dizer que historiadores são como Robinson Crusoé em sua ilha, se dando por missão investigar, nomear, tentar compreender a organização dos fatos, a coerência de uma cultura, a mecânica do social.
Como tantos colegas, faço história como se exuma um cemitério. Só que nem sempre achamos os mortos. Ao aprofundar as escavadeiras que arranham o solo duro com suas longas forquilhas de aço, procuramos o passado inacessível. Sabemos que ele está lá, sob a forma de uma substância observável, tangível, cercada de precauções de uso, suscetível de ser trazida a vida. Tal quantidade de passado não é só terra, poeira e ossos.  Pois para dar vida aos mortos, é preciso mais do que identificá-los. É preciso um caminho para encontrar o tom justo, o bom ritmo, a imagem, a cor, a música, a emoção, tanto para trazê-los à superfície, quanto para descrever o seu tempo. É necessário buscar as palavras, achar a visibilidade na invisibilidade, captar o som de passos perdidos, o balanço de uma flor, uma sombra na calçada. Uma sombra que poderia passar despercebida, continuar não nomeada, ninguém a alcançaria, se o historiador não estivesse lá.
E por isso, Senhoras e Senhores, penso é preciso tentar construir uma história que se queira também literatura, uma história-criativa. Nela, pretendo me exercitar como o mestre chinês que, segundo a tradição, desenhava cotidianamente um leão. Com o objetivo de desenhar, no fim da vida, o leão perfeito.
Muito obrigada.

 20 de agosto de 2015 - Rio de Janeiro, Brasil 





[1] - Ivan Jablonka, L´Histoire est une litterature contemporaine – Manifeste pour les Sciences Sociales, Paris, Seuil, 2014, p.19.
[2] -.Ivan Jablonka, L´Histoire est une litterature contemporaine – Manifeste pour les Sciences Sociales, Paris, Seuil, 2014, p.19.
[3] - Ver o emblemático artigo de Stone “Revival of narrative”, Past and Present, 1979.



[i] - Michel Mafessoli,  La Republique des Lettres, Paris, Gallimard, 2012.
[ii] - Sobre o tema ver Marcel Gauchet, “Les Lettres sur l´Histoire de France de Augustin Thierry”, in Pierre Nora, dir. Les Lieux de Mémoire, vol.2, La Nation, tomo I, Paris Gallimard, 1986.
[iii] - Gustave Flaubert, carta a Louise Collet de 6 de abril de 1853, Correspondance, Vol.2, Paris, Gallimard, 1980, p.289.
[iv] “Du Progrés des ètudes historiques em France depuis le XVIe siècle”, Revue Historique, Tomo I janeiro-junho, 1876, p.5-38.
[v] - Paul Ricoeur, Temps et récit., vol. I, Paris, Seuil, 1983, Jacques Ranciére, Les noms de l´Histoire, - Essai de poetique de savoir, Paris, Seuil, 1992.

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