segunda-feira, 24 de agosto de 2015

MARY DEL PRIORE, HISTORIADORA, TOMA POSSE NA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS COM UM DISCURSO NO MAIS ALTO PADRÃO ENSAÍSTICO.

Discurso Posse ACL

  
Caríssimos membros da muito honrada Academia Carioca de Letras, colega Sonia Salles, Senhores e Senhoras, amigos queridos, meus adorados familiares, é com imenso prazer que essa historiadora lhes fala. Pois, além do prazer de, doravante, integrar esta Casa, existe também a admiração pela cultura dos confrades, por seu profundo sentido das realidades humanas, cuja riqueza se lê através do percurso e das convicções de cada um. Convicções plenamente vividas nesta Academia Carioca, Casa que oferece aos seus membros um pacto com o espírito e com as letras.  
Prazer, entusiasmo e encanto me trazem aqui, pois por décadas, tenho me perguntado sobre as afinidades que ligam Letras e História, Literatura e Memória. Estar sob esse teto, é poder, graças ao convívio com os confrades e ao que aprenderei com eles, trazer algumas respostas a essa questão.
Porém, pertencer à Casa, estar entre os seus membros, honrá-los e prestigiá-los é, também, lembrar. Lembrar, enfim, os que não estão mais. Dar-lhes vida, fazê-los presentes nesta tarde, quitar o dever de reconhecimento em relação a eles. Vemos aí a função mesma da história: trazer o passado ao presente. Homenageio-os, então, ainda que de forma modesta, pois haveria muito a dizer dos grandes nomes que foram meus predecessores na cadeira 32.
            Começarei por José Gabriel Lemos Brito, historiador e autor de uma biografia de Frei Caneca e de uma História Econômica do Brasil Colonial. E Mário da Veiga Cabral, professor do Instituto de Engenharia e Instituto de Educação e autor de vasta e duradoura obra didática nas áreas de Geografia e História. Ambos, sinceros conhecedores da vida econômica e das idéias políticas, foram mestres na ciência histórica por meio da qual tentaram capturar a profundidade do passado, além de se engajar na batalha por melhorias no ensino da disciplina. A busca da palavra justa, um consenso dos fatos político-militares, o rigor nas datações, o pontilhismo cronológico fizeram de suas obras um retrato das ciências humanas, na primeira metade do século XX. Ciências preocupadas, então, com os fatos significativos do passado da nação.
Também ocupante da mesma cadeira foi Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, jurista, filósofo, matemático, escritor, senhor de uma carreira brilhante, que despontou aos dezesseis anos na Universidade de Oxford e culminou com uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Senhor de trezentas obras traduzidas no exterior, foi do engenho de Mutange, no Ceará, para postos diplomáticos no exterior. Seu ofício não foi mera profissão. Mas, um modo de vida, um estado de espírito, e, por que não?  Foi uma visão de mundo. Intelectual brilhante, familiarizado com os autores europeus, em especial os alemães, o escritor e jurisconsulto Pontes de Miranda difundiu novos métodos e concepções do Direito no Brasil. Sua obra, pioneira em diversos setores, se distribui por quase todos os campos da ciência jurídica, do Direito Constitucional ao Civil, do Processual ao Comercial.
E, finalmente, Dahas Zarur, jornalista, autor de vários livros sobre a Santa Casa de Misericórdia, instituição fundada, em 1582, por Padre Anchieta, teto que acolheu por séculos nossas crianças “enjeitadas” em sua Roda de Expostos. Misericórdia da qual Zarur foi Provedor por décadas a frente de gestões apaixonadas e controvertidas. Para alegria de todos os que prezam a história do Rio de Janeiro, a Santa Casa tem, agora, como diretora cultural, minha querida professora Maria de Lourdes Horta, irmã do saudoso Luiz Paulo Horta.
Todos eles ocupantes da cadeira 32 fundada por Mário Cochrane de Alencar advogado, poeta, jornalista, contista e romancista brasileiro. Filho de José de Alencar, protegido e amigo de Machado de Assis com quem mantinha relações filiais, - como analisou em ensaio sensível e recente Antônio Carlos Secchin – e, finalmente, membro da Academia Brasileira de Letras, Mário de Alencar, talvez seja quem melhor represente o espírito humanista que deve presidir as academias. O compromisso do intelectual, do acadêmico com o país das Letras, com a defesa de valores desinteressados como a Liberdade, a Justiça ou a Razão, com projetos coletivos que beneficiem o livro e a leitura, foram o seu. Compromisso, aliás, que fez Mario de Alencar lutar incansavelmente para que o Silogeu Brasileiro, atual Academia Brasileira de Letras, ganhasse um teto. O curioso é que laços familiares me unem a essa cadeira, pois, ainda venho a ser parente de Mário Cochrane de Alencar. Minha avó, Lucy Cochrane Simonsen, assim como Roberto Simonsen, seu irmão, eram filhos de Robertina da Gama Cochrane, - de casada, Simonsen -, filha de Wallace da Gama Cochrane, meio irmão de Georgina Augusta de Alencar, mãe de Mário.
Laços de família à parte, a lição dos antecessores desta cadeira, senhoras e senhores, é a de investir sempre numa união útil a todos. União que seja um tesouro de sensibilidades, de experiências e preocupações comuns. E, sobretudo, união de diferenças enriquecedoras. O poeta Paul Valéry, lido por tantos de nós, já sublinhara em relação à Academia Francesa: “Num mundo instável, onde o poder político se encadeia ao absurdo e ao imediatismo, além de engajado na luta perpétua por sua própria existência, a resistência à pressa, à confusão, à versatilidade das paixões reais ou simuladas é indispensável. Pensemos numa ilha – a Academia - onde se conservaria o melhor da cultura!”.
Ilha, “insula”, palavra que remete ao isolamento. Mas, no caso seria apenas um empréstimo literário de Valéry, pois as atuais academias, outrora “Societés Savantes”, menos e menos se parecem com suas avós, fundadas entre os séculos XVII e XVIII. Hoje, elas caminham para uma participação maior e melhor na sociedade. A busca de sinergia entre escritores e leitores, o apagamento entre a língua erudita e a popular, o entusiasmo pela palavra, no papel ou na tela, no livro ou no blog, constituem uma agenda nova para todos que desejamos trabalhar por um país letrado.
Integrada a essa proposta, ou seja, a da construção de um Brasil que preze seus escritores, é que me pergunto se o arquipélago não seria uma definição melhor para determinar a multiplicidade de tendências – as tais “diferenças enriquecedoras” as quais me referi – que, atualmente, vemos se consolidar nas variadas academias. E nessa luta pela valorização de individualidades, de singularidades capazes de criar um novo espaço de autores, escritores, pesquisadores, porque não discutir, nessa Casa, uma Casa das Letras, a possibilidade de a história ser uma forma de literatura contemporânea?
Digo isso, pois é preciso conhecer a história da disciplina histórica para saber que literatura e história já andaram de mãos bem dadas, por muito tempo. Sem dúvida fronteiras são necessárias. A história não é, e jamais será ficção, fábula, delírio ou cópia. A distinção que Aristóteles opera entre poesia e história, no capítulo 9 de sua Poética é, deste ponto de vista, fundadora.
Mas esse distanciamento desejada pelo filósofo, não condena o historiador a ser um órfão da poïesis. A sua inventividade nos arquivos, o seu engenho no emprego de métodos e conceitos, a sua criatividade no uso da narrativa ou do léxico têm, em si, um sentido forte.  Ela – a inventividade, na ficção ou no discurso histórico - é um ato criador. E sabemos: o historiador trabalha, conjugando uma produção de conhecimentos, uma poética do saber, mas, também, uma estética. E, portanto, o problema, como sugeriu Jacques Ranciére, não é “saber se o historiador deve ou não fazer literatura. Mas qual literatura ele faz”[1]. Poderíamos dizer a mesma coisa, do escritor em relação às Ciências Sociais: o problema não é saber se ele fala do real. Mas se, por meio de sua escrita, ele oferece condições de compreender a realidade.
Penso que o importante é não ter mais constrangimentos. É ousar. É experimentar coletivamente. É imaginar uma História que cative, que emocione, pois, então, ela será capaz de demonstrar fatos passados e desvelar a vida dos ancestrais de tantos brasileiros que ainda desconhecem suas raízes. Que ignoram sua identidade. Que antipatizam com a vida dos ancestrais. Essa história hibrida existe e é chamada por alguns historiadores de creative-history[2].
Mas meu papel aqui, hoje, é cansá-los um pouquinho, e vou fazê-lo lembrando que, desde a Antiguidade, se tenta extrair da história as suas bordas literárias. De Heródoto a Tucídides, os debates sobre, se o historiador poderia embelezar, idealizar ou caricaturizar, existem. A história, então, se misturava à poesia, ao mito, ao elogio, à grandiloqüência. Veja-se Heródoto, Tácito e Tito Lívio, divididos entre o panegírico e a verdade. Como que antecipando o relativismo em que vivemos, eles intuíam que a verdade absoluta e objetiva não existe. Existe, sim, aquela que é construída subjetivamente pelo discurso de cada um.
 Eis porque, para muitos, as formas literárias seriam uma ameaça. A severidade deveria estar presente nas genealogias bíblicas, nos nomes de reis gravados nas acrópoles, nas efemérides dos pontífices. Houve sempre quem discordasse. Cícero por exemplo. Para ele, o simples narrator, não bastava. O exornator – o que adorna – deveria exibir todas as qualidades da sua escrita.
 Mais tarde, na época clássica, quando surgem os primeiros tratados sobre o que seria a matéria histórica, o pregador e ensaísta Pierre le Moyne no seu De l´histoire anunciava que “era preciso ser poeta para ser historiador”. Na contramão, seu contemporâneo, Jean Bodin, pregava a importância da “historia nuda”: despida, sóbria, simples direta”. O debate prosseguia.
Até o século XVII, momento do nascimento das Belles-Lettres, ou da chamada República das Letras, uma comunidade abstrata reunia poetas, filósofos, moralistas, historiadores e até astrônomos[i]. Com a proliferação de salões literários, academias, mecenatos, da imprensa e, sobretudo, da codificação de uma linguagem definindo o que fosse o “homem de letras”, o historiador se tornava, por osmose, também um escritor e vice-versa. Um era o outro. Os romances de Walter Scott demonstram que o mesmo escritor que idealizava cavaleiros e castelos, usava, como qualquer historiador, as informações extraídas das crônicas medievais, conservadas em velhas bibliotecas ou arquivos.
Outro exemplo importante da afinidade entre literatura e história, temos em Chateubriand. De seu Ensaio sobre as Revoluções ao Memórias de Além-Túmulo, ele fez de tudo: história de sua família, autobiografia, história do Antigo Regime, da Revolução de 1789 e de Napoleão. No início do século XIX, os historiadores-escritores inspiraram uma geração de escritores-historiadores com seus temas, cronologias e narrativas. O Ivanhoé Walter Scott foi seguido por Notre Dame de Paris, de Victor Hugo, de Os Chouans de Balzac e dos romances de capa e espada de Alexandre Dumas.
Alguns como Alfred de Vigny, e entre nós, José de Alencar, tinham o zelo de citar ao pé da página, os documentos históricos dos quais extraíam informações para sua ficção. O uso de mapas antigos, imagens, descrições, diálogos, detalhes e até viagens – como a que fez Chateubriand à Itália para escrever Os mártires - “vivificavam a história”. Lembro aqui que, décadas mais tarde, Marguerite Yourcenar fez a mesma viagem para escrever seu Memórias de Adriano. Tal conjunto de fontes documentais sempre permitiu ao leitor acreditar que, apesar da distância, os homens do passado eram dotados de vida e habitados por paixões. Torneios, raptos, festas e crimes faziam de duques, princesas e reis, contemporâneos dos leitores, tão bem descritos, vivos ou “ressuscitados” como diria o historiador Jules Michelet.
 Reações, sim. Na universidade de Leipzig, Ranke recusava qualquer linguagem poética e brandia o que denominava “imparcialidade”. Segundo o mesmo autor, dever-se-ia fazer história “cheio de calma soberana”. Conseguiu? Não, totalmente. Quando teve que descrever a bravura do rei francês Francisco I, na batalha de Milão, Ranke usou os mesmos artifícios que criticara: metáforas, exortações, e até o “Quem sabe se...”, o primórdio da história contrafactual que começa sempre com o “Se’: Se Getúlio não tivesse se suicidado? Se tivéssemos perdido a Guerra do Paraguai? Se Dilma não tivesse vencido? Ora, exatamente por permitir a conversa entre literatura e história, ficção e fatos é que, junto com Michelet e Macaulay, Ranke vendia tantos livros quanto hoje são vendidos best-sellers que tratam da II Guerra Mundial![ii]
            Usando as mesmas linhas cruzadas entre ficção e história, Balzac fez pela França o que nenhum historiador na época conseguiu fazer para a história do Egito ou de Roma: ele pesquisou, registrou, explicou estabeleceu a significação das ações e dos protagonistas. No século XIX, tratou de questões que a historiografia foi buscar apenas, em meados do século XX: a evolução social, suas hierarquias, práticas e tensões entre grupos, as idades da vida, a moradia, os hábitos, o lazer, o sexo, enfim: um programa de história social. Com o agravante de que, aos olhos do leitor, seus romances são mais autênticos, mais demonstrativos, resumindo, mais verdadeiros do que qualquer tese universitária. A Comédia Humana, com seus vários personagens e cenários, tornou mais visível do que nenhuma outra obra, a sociedade pós-revolucionária francesa.
A agenda dos escritores realistas – no Brasil temos o maior representante em Machado de Assis – não era muito diversa de um historiador, hoje: vontade de descrever a realidade sem idealizá-la, interesse pela vida do povo e as coisas do cotidiano, evocação dos problemas sociais da época. Mas esse excesso de realidade não seria daninho?  Flaubert em carta a Louise Collet profetizava que “a literatura iria tomar os contornos da ciência” com seu interesse pelo real, pelo vivido ou pelo quase jornalístico. [iii] Tinha razão. Para escrever Germinal, Emile Zola assistiu a reuniões sindicais, desceu nas minas de carvão e estudou obras de grandes alienistas para reproduzir os sintomas de doenças profissionais que atingiam os mineiros. Nos Estados Unidos, John Steinbeck visitou e percorreu os campos de imigrantes da Califórnia para escrever As vinhas da ira. As Letras se deixavam impregnar, mais e mais, de Ciências.
A partir de 1870, também os historiadores adotaram “um ponto de vista estritamente científico” – como resumiu um deles, o positivista Gabriel Monod[iv]. Mas o problema prosseguia: quando havia literatura demais, a história desaparecia. Quando havia de menos, não sobrava nada. Se, durante o Romantismo, a história vivia em osmose com a literatura, à medida que a disciplina se institucionalizava, nas universidades, nas cátedras, nos concursos, esse convívio, antes visto como benéfico, passou a ser considerado muito narrativo, lírico e até patético – pateticismo do qual foi acusado injustamente, por exemplo, Michelet. A regra, então, foi fazer do historiador uma criatura independente, descolada do homem de letras. Doravante, sem emoção, sem tendências e sem aparatos, a História convergiria para a história-ciência.
O cientificismo e o positivismo, presentes na literatura realista, impunham a objetividade como regra. O importante era buscar o fato. Descrevê-lo como se o historiador estivesse em cena, com lupa e microscópio à mão, e, sobretudo, com linguagem comedida e policiada por métodos e teorias. Enquanto a literatura se libertava, a história se prendia mais e mais às corporações, aos cargos na carreira, aos arquivos, construindo zelosamente as bases da chamada Escola Metódica.
 É nesse momento que observamos a ruptura, ruptura voluntarista e imposta por um determinado grupo de historiadores-funcionários-universitários, entre o historiador - escravo do real, da seriedade, da ciência. E o escritor, senhor da arte da imaginação e da subjetividade.
Não há tempo aqui para descrever o peso da escola Metódica na consolidação de textos pesados, nos quais o “Nós” majestático substituía o Eu narrador. Em que notas de rodapé tomavam páginas inteiras e a obrigação de debates teóricos empestava os livros de História.  A partir dos anos 60, o marxismo fez o resto: a camisa de força das “lutas de classe”, do predomínio das interpretações econômicas sobre o cultural ou o social, das dezenas de anexos com dados quantitativos, enterrou definitivamente a possibilidade de uma narrativa sedutora. Eric Hobsbaw, historiador marxista inglês, talvez seja a única exceção a essa maré de textos que se lê com o mesmo cansaço com que se escalam montanhas. O pior era o sentimento de transgressão ou lesa-cientificidade que se tinha ao romper com tais pressupostos.
O curioso, porém, é que mesmo autores ditos marxistas como Fernand Braudel, escreveram clássicos como O Mediterrâneo no tempo de Felipe II, verdadeiro afresco com intrigas, ações, um herói, (o próprio Mediterrâneo) e metáforas as mais variadas. Ou, outro exemplo, Georges Duby que ao publicar seu Guilherme, o marechal, teve a coragem de dizer que escreveu um livro que ele gostaria que se lesse “como um romance de capa e espada”.
Ao final dos anos 80, vários historiadores se insurgiram contra a servidão voluntária, a obediência cega aos métodos marxistas e quantitativistas que vicejavam nas universidades. Lawrence Stone, Georges Duby, Nathalie Davies entre outros resolveram dar prazer ao leitor. Resolveram dar prazer, mas, também, ter prazer na redação da pesquisa[3]. O resto? O resto se seguiria com as regras do ofício: rigor, honestidade, ritmo. A moda das biografias, a necessidade das descrições no lugar das explicações, as “artes de contar” esmagaram a obsessão com as estruturas. Historiadores do porte de Michel de Certeau, Paul Veyne, Paul Ricoeur[v], entre outros, demonstraram, cada qual com seus métodos, que a história tinha necessidade de intrigas, de figuras de estilo, de cenários. Veyne chega a dizer que não há “diferença entre história e ficção” ou que “a história é um romance verdadeiro”.  Enfim, os debates são profundos e não vou submergi-los com eles.
Mas eles desembocaram numa mudança. E o que interessa, hoje, é discutir melhor o papel e a definição da “não ficção” – pois a história é assim considerada. Ela está num mesmo saco, junto com as reportagens, os guias de viagem, as autobiografias e coletâneas jornalísticas. A história, como os demais textos, tem uma função cognitiva – ela informa, explica, interpreta, ensina, transmite. Mas ela não é só uma coleta de fatos. É, sim, uma forma de educação cidadã. Ela pode atuar na praça pública, pois participou das lutas pela liberdade e pelas verdades, lutas que atravessaram o século XX. Ela serve para combater a indiferença, a intolerância, a amnésia. E para fazer a História avançar no século XXI, não se trata mais de repetir Walter Scott ou Balzac. Não se trata de renunciar a todas as regras do ofício. Não se trata, tampouco, de reconciliar história e literatura, um casal que tenta se divorciar a tempos. Mas, sim, de favorecer o encontro entre método e narrativa.
Senhoras e senhores. A Academia Carioca de Letras será o espaço privilegiado, dentro do qual e na troca com os confrades, poderei elaborar, não mais uma história que se “fará literária” pelo empréstimo de lantejoulas ou plumas. Mas, uma história mais vibrante, sensível, que indague, investigue com método, rigorosa, sendo igualmente mais reflexiva e honesta com ela mesma.
Eu comecei mencionando as ilhas de excelência que foram e são as Academias. Gostaria de retomar a imagem para dizer que historiadores são como Robinson Crusoé em sua ilha, se dando por missão investigar, nomear, tentar compreender a organização dos fatos, a coerência de uma cultura, a mecânica do social.
Como tantos colegas, faço história como se exuma um cemitério. Só que nem sempre achamos os mortos. Ao aprofundar as escavadeiras que arranham o solo duro com suas longas forquilhas de aço, procuramos o passado inacessível. Sabemos que ele está lá, sob a forma de uma substância observável, tangível, cercada de precauções de uso, suscetível de ser trazida a vida. Tal quantidade de passado não é só terra, poeira e ossos.  Pois para dar vida aos mortos, é preciso mais do que identificá-los. É preciso um caminho para encontrar o tom justo, o bom ritmo, a imagem, a cor, a música, a emoção, tanto para trazê-los à superfície, quanto para descrever o seu tempo. É necessário buscar as palavras, achar a visibilidade na invisibilidade, captar o som de passos perdidos, o balanço de uma flor, uma sombra na calçada. Uma sombra que poderia passar despercebida, continuar não nomeada, ninguém a alcançaria, se o historiador não estivesse lá.
E por isso, Senhoras e Senhores, penso é preciso tentar construir uma história que se queira também literatura, uma história-criativa. Nela, pretendo me exercitar como o mestre chinês que, segundo a tradição, desenhava cotidianamente um leão. Com o objetivo de desenhar, no fim da vida, o leão perfeito.
Muito obrigada.

 20 de agosto de 2015 - Rio de Janeiro, Brasil 





[1] - Ivan Jablonka, L´Histoire est une litterature contemporaine – Manifeste pour les Sciences Sociales, Paris, Seuil, 2014, p.19.
[2] -.Ivan Jablonka, L´Histoire est une litterature contemporaine – Manifeste pour les Sciences Sociales, Paris, Seuil, 2014, p.19.
[3] - Ver o emblemático artigo de Stone “Revival of narrative”, Past and Present, 1979.



[i] - Michel Mafessoli,  La Republique des Lettres, Paris, Gallimard, 2012.
[ii] - Sobre o tema ver Marcel Gauchet, “Les Lettres sur l´Histoire de France de Augustin Thierry”, in Pierre Nora, dir. Les Lieux de Mémoire, vol.2, La Nation, tomo I, Paris Gallimard, 1986.
[iii] - Gustave Flaubert, carta a Louise Collet de 6 de abril de 1853, Correspondance, Vol.2, Paris, Gallimard, 1980, p.289.
[iv] “Du Progrés des ètudes historiques em France depuis le XVIe siècle”, Revue Historique, Tomo I janeiro-junho, 1876, p.5-38.
[v] - Paul Ricoeur, Temps et récit., vol. I, Paris, Seuil, 1983, Jacques Ranciére, Les noms de l´Histoire, - Essai de poetique de savoir, Paris, Seuil, 1992.

domingo, 26 de julho de 2015

A 56ª BIENAL DE VENEZA DE OKWUI ENWEZOR É SOMBRIA, TRISTE E FEIA


BENJAMIN GENOCCHIO


2015-05-13




Okwui Enwezor comprometeu-se a re-imaginar a Bienal de Veneza e a exposição que criou, dividida entre o Arsenale e o pavilhão italiano no Giardini, prova que é um homem de palavra. Concebeu o que só pode ser descrito como a bienal mais sombria, triste e feia de que há memória; uma mostra que, em nome da acção global e da mudança social, massacra o visitante com teoria política, em vez de nos dar os prazeres e a estimulação da grande arte. A sua visão do mundo é desolada, irada e deprimente.


A Bienal tem 120 anos de idade e se ainda tem valor como exposição está no facto dela oferecer, numa plataforma influente, perspectivas sucessivas e muitas vezes conflituosas sobre a prática artística contemporânea e a sua relevância para o mundo em que vivemos. Podemos não concordar com a visão de Enwezor da arte e do seu papel utópico no mundo de hoje - eu certamente não concordo - mas não há como negar que o mundo hoje enfrenta divisões e crises profundas e um futuro incerto. Vale a pena explorar como é que essas forças têm impacto nos artistas, eu concordo.
Temos que admirar a sua perspectiva, pois esta é, possivelmente, a exposição da Bienal curatorialmente mais rigorosa que eu já vi em 20 anos que venho aqui. O Dogma impera numa mostra que é muito bem desprovida de beleza, aspiração, ironia ou diversão. Há também uma atenção para com a arte que está a mostrar ou a lidar com a violência, que para mim é profundamente perturbador. A suas preocupações pessoais são igualmente frontais e centradas: usa a sua autoridade como o primeiro curador da Bienal de ascendência africana para validar artistas da periferia do mundo, da África especialmente, reunindo 136 artistas de 53 países, 89 deles estão 
Enwezor, de origem nigeriana, é conhecido pelas suas preocupações com a diversidade geográfica e por uma firme abordagem anticapitalista à arte. Mas as suas obsessões curatoriais alimentam dúvidas persistentes sobre a legitimidade do tema geral da exposição, "Todos os futuros do mundo" (que, aliás, soa como o título sem sentido de um filme de James Bond) e a relevância do tipo de arte que ele pretende promover. Todos sabemos que o mercado é uma força na produção da arte contemporânea e ignorar as implicações mais amplas deste facto sobre a arte parece, digamos, inútil, perverso e ingénuo.
Enwezor inteligentemente procura explorar o descontentamento generalizado do mundo da arte em relação à ordem actual das coisas. As pessoas não estão satisfeitas com o sistema da arte e com a forma como este perpetua uma desigualdade de oportunidades real e destructiva de muitas maneiras. A sua resposta mais controversa a este problema é ter um artista-arquiteto célebre, David Adjaye, a construir um palco no pavilhão italiano e, em seguida, convidar artistas para comissionar leituras de vários textos políticos; Por exemplo, a contribuição de Isaac Julien é uma leitura de todos os quatro volumes da obra de 1867 Das Kapital, de Karl Marx. É um golpe político pateta na fronteira do kitsch, dado que o texto de Marx tem relevância limitada para a arte ou para a vida em 2015, ou para um evento elitista do mundo da arte como a Bienal de Veneza. O gesto provocou uma resposta imediata de artistas que colaram panfletos de protesto sarcásticos em torno da mostra. Os panfletos gozavam com Okwui e Karl Marx, perguntando o que estes dois têm em comum no contexto de uma exposição de arte internacional.
O debate sobre a fetichização do objeto como mercadoria encontrado nas páginas de Das Kapital já acabou, foi embora, pois hoje a nova mercadoria no nosso meio é a informação e a questão central que enfrentamos é como a podemos avaliar e comercializar. O objeto em si tem menos valor e identidade nos dias de hoje; é mais acerca do evento, especialmente para a arte. Teria sido mais relevante ler, digamos, a posição de Thomas Piketty sobre os padrões sociais e políticas que sustentam a actual desigualdade económica (uma ideia que me foi sugerida pelo curador Gianni Jetzer) ou qualquer quantidade de livros lidando com uma dissolução de uma distinção entre informação e conhecimento.

ROMANCE DOLORIDO: ‘A IMAGINÁRIA’, LIVRO DE ADALGISA NERY, É RELANÇADO 35 ANOS DEPOIS




Na obra da brasileira escritora, jornalista e política narra seu casamento perturbador com o pintor Ismael Nery
A mãe morre quando ela é menina. Aos 8 anos, vai para um internato. O pai casa-se novamente, com uma italiana irascível. Aos 14 anos, apaixona-se por um homem seis anos mais velho, “de sensibilidade aguçada”. Casa-se aos 15, e muda-se para a casa da família do marido, um trio de mulheres alucinadas, em que se destaca a mãe beata com delírios persecutórios. Sua residência, mais tarde, é frequentada por intelectuais e artistas — de cujas animadas conversas, apesar de inteligente e curiosa, é alijada. Diagnosticado com tuberculose, o marido confessa ter um caso e, entre outras atitudes impiedosas, pede-lhe que procure a amante em seu nome. Jovem viúva com filhos pequenos, foge das sandices da sogra mudando-se para uma pensão, e sai à cata de emprego. É assim, entre episódios de mesquinharia, crueldade e loucura, que transcorre a vida de Berenice, narradora do romance “A imaginária”, de Adalgisa Nery. Assim transcorreu a vida da própria Adalgisa, contada neste livro de autoficção que chega às livrarias depois de 35 anos fora de catálogo, desde a morte da autora. Uma escritora dividida entre mundos com um talento forte e aprisionada com o primeiro marido o artista plástico Ismael Nery.

RECEITAS E A ANTROFAGIA


Antropofagia, Montaigne e uma receita especial


Como filósofo francês enxergou o canibalismo dos tupinambás – e de que modo este choque cultural inspirou um caldinho original, cuja receita oferecemos
Poucas ideias foram tão fecundas em galvanizar a identidade brasileira quanto aquela que está no centro do Manifesto Antropófago, publicado por Oswald de Andrade em 1928, no primeiro número da Revista de Antropofagia. “Só a Antropofagia nos une!”, bradou o poeta, e assim cunhava o termo, saudando a um só tempo a ancestralidade e o devir da cultura nacional.
Falava da “devoração” cultural do outro, tendo como símbolo a devoração “literal” praticada por alguns povos indígenas nativos das terras que vieram a se tornar o Brasil. Ou seja: apropriar-se do outro nunca nos fez menos “brasileiros”, ao contrário, essa flexibilidade e capacidade de diálogo é que nos faria o que somos. Ao menos assim seria neste utópico mito de origem modernista.
A nação mestiça brasileira ganhava um ato de fundação: nada de levantes políticos ou militares, mas sim a “Deglutição do Bispo Sardinha”, o primeiro europeu a entrar oficialmente no cardápio dos índios brasileiros, no caso, da etnia caeté. O fato, que ocorreu em 1556, foi usado para difundir a fama de “barbárie” dos povos nativos da América.
Mais ou menos nessa época, meados do século XVI, o filósofo francês Montaigne tratou do Novo Mundo, principalmente as terras ocupadas pelos seus compatriotas, onde hoje é o Rio de Janeiro. Contestando a pecha de “novos bárbaros” que recaía sobre os índios dos quais teve notícia (provavelmente os tupinambás), Montaigne escreveu o ensaio “Dos canibais”, abordando o tema que causava espanto na Europa. A partir de relatos, Montaigne se impressionou com o profundo respeito com que os índios tupinambás devoravam os seus inimigos capturados na guerra – talvez, pensava ele, com o intuito de absorver-lhes a coragem e a força. Aliás, segundo o francês, os próprios capturados não tentavam escapar, pois isso representaria algo como uma confissão de covardia. E ele via nisso um contraste com o jeito europeu de tratar seus prisioneiros e, também, de querer sobreviver a qualquer custo, mesmo que isso representasse a desonra.
Aproveitando o mote, e em retribuição à homenagem de Montaigne, oferecemos aqui a oportunidade de devorar e saborear um clássico francês. É a Vichyssoise Tupiniquim. A principal diferença em relação ao tradicional caldinho francês é que a batata é substituída pela mandioca.
A receita é de Raphaela Homem de Melo, chef da OCA Tupiniquim. Ela incluiu a dica de preparar em casa um caldo de legumes natural e, também, de finalizar com uma maravilhosa chantilly de noz moscada.
Aproveite e depois nos conte como ficou!
Vichyssoise Tupiniquim
Ingredientes:
500 g de mandioca sem casca
4 talos de alho-porro cortado em rodelas
3 colheres de sopa de manteiga
Sal a gosto
Pimenta branca moída a gosto
Caldo de legumes natural

Para o caldo de legumes natural:
2 litros de água
1 cenoura descascada e cortada ao meio
1 cebola inteira descascada e cortada ao meio
As folhas do alho-porro que restaram dos talos

Preparo: despeje todos os ingredientes na água e colocar para ferver. Depois que levantar fervura, deixe cerca de 15 minutos, até que este caldo fique bem saboroso. Coe e reserve para cozinhar a mandioca.
Modo de preparo:
Murche as rodelas de alho-porro na manteiga. Acrescente a mandioca, o sal, a pimenta e o caldo de legumes. Deixe cozinha até que a mandioca esteja bem macia. Processe tudo em um liquidificador e coe. Sirva bem quentinho.
Sugestão: finalize o caldo com chantilly de noz moscada

segunda-feira, 2 de março de 2015

MÚMIAS SÃO ENCONTRADAS NO ESGOTO NO EGITO



Duas múmias egípcias foram encontradas flutuando no esgoto de um vilarejo ao sul do Cairo, informou a imprensa local.



As múmias, que estavam embrulhadas em vários lençóis e dentro de seus sarcófagos de madeira, foram encontradas pela polícia em um córrego poluído num vilarejo perto da cidade de Minya, 240km ao sul do Cairo, informou a revista online CairoScene.

Acredita-se que elas sejam do período greco-romano (332 aC a 395 dC), mas o Ministério de Antiguidades disse que pouco restava dos corpos.

"Apesar dos caixões estarem decorados com desenhos coloridos, eles não tinham nenhuma inscrição egípcia antiga ou hieróglifos", disse o ministério em comunicado. Um terceiro sarcófago também foi encontrado, mas vazio.

Não se sabe como as múmias chegaram ao córrego, mas Yusuf Khalifa, funcionário do ministério, disse ser provável que elas tenham sido descobertas por pessoas que realizam escavações ilegais.

Há fortes restrições a escavações no Egito - em outubro de 2014, sete pessoas foram presas em Giza, nos arredores do Cairo, após uma escavação ilegal ter descoberto os restos de um templo antigo.

Especialistas tentam, agora, restaurar os restos das duas múmias. Elas deverão ser expostas junto com seus sarcófagos no museu de Minya, disse o ministério.

domingo, 4 de janeiro de 2015

COMO ANDA A ARTE?

Curador Charles Esche afirma: época em que artistas limitavam-se à liberdade formal acabou. Em tempos assustadores, estética precisa engendrar outra ética
Entrevista a Vanessa Rato, Imagem: Cildo MeirelesFontesdetalhe de instalação (1992-2008)
Na conferência que deu na semana passada, na Fundação Calouste Gulbenkian, Charles Esche comparou o desmonte do conceito de Estado na Europa a uma cidade após um terremoto de grande escala: num edifício tudo parece intocado e funcionando; o prédio ao lado, porém, foi-se – abrimos a porta e percebemos que a fachada guarda apenas uma ruína, um buraco cheio de escombros.
Isto já aconteceu, constatâmo-lo todos os dias, a cada passo. Agora resta reinventar. E Esche acha que os museus e teatros podem tomar as rédeas desse processo. Os tempos da arte pela arte acabaram – é preciso uma “arte-ferramenta”, diz ele. Um demagogo? O que ele diz é: “Eu sei que pareço um marxista enfurecido, mas não sou, sou apenas realista.”
Há dez anos à frente do conhecido Van Abbemuseum, de Eindhoven, na Holanda, e um dos responsáveis pela Afterall Publishing, que fundou em 1998 com o artista plástico Mark Lewis, Esche foi este ano um dos curadores da Bienal de São Paulo, depois de ter feito a de Gwangju (2002) e a de Istambul (2005). Fundador, em 2010, da Internationale, uma confederação de museus europeus, foi apontado pelo Center for Curatorial Studies do Bard College como o bolsista de 2014 do Audrey Irmas Award for Curatorial Excellence, antes atribuído, por exemplo, a Harald Szeemann, Catherine David, Okwui Enwezor ou Lucy Lippard.
A grande afirmação da sua conferência foi que instituições de caráter artístico como museus e teatros podem e devem assumir-se como os grandes agentes da reinvenção do Estado. O que levanta antes de mais a pergunta: em que sentido é que o Estado precisa de ser reinventado? Como diretor de museu, que diagnóstico faz do atual estado do Estado? 
Claramente, o Estado, ou os Estados, entraram em crise existencial. Uma crise de um tipo que já não se via há bastante tempo – provavelmente desde o fim do século XVIII, com o nascimento do conceito de Estado-nação. Diria que a combinação do projeto europeu com a globalização do capital e a perda de soberania – que é muito clara em Portugal mas é visível por todo o lado desde o início da atual crise, em 2008 – produziu um desafio fundamental: a ideia de Estado, tanto em termos de estrutura identitária, como em termos econômicos e de estrutura social, que define um grupo de pessoas como cidadãos e lhes atribui direitos e responsabilidades, essa noção de Estado – que até certo ponto nasce da Revolução Francesa, mas que também deriva do estabelecimento da social-democracia na Europa do pós-guerra e que foi o modelo até agora dominante na Europa –, está ameaçada. Não é um fim que se possa propriamente celebrar. Em muitos sentidos, torna a vida mais difícil. Mas, através de várias manipulações e fracassos da social-democracia – manipulações através dos mass media, mas também fracassos do próprio Estado – a ideia de Estado parece, de fato, em decadência. E não vejo forma de que possa ser salvo de si mesmo na forma que até agora lhe conhecíamos. Os objetivos desse Estado talvez ainda se possam salvar. Mas é preciso que sejam traduzidos para novos suportes.

A que fracassos se refere?
Ao fracasso do Estado em se adaptar a contextos e necessidades em mutação, ao fracasso do modelo do Estado providência, dos serviços nacionais de saúde, da ideia de que a cidadania é partilhada pelas pessoas e que, portanto, todas têm certos direitos, a própria ideia dos direitos que derivam de uma cidadania e dos deveres que lhe estão associados… No fundo, estamos nos afastando de uma estrutura democrática retomando um modelo oligárquico em que um pequeno grupo de pessoas organizam a maior parte das decisões e em que os governos, que não estão completamente no controle, alinham-se com essas decisões. Presume-se que um Estado tem um governo e que o governo determina o que acontece nesse Estado. Acontece que esta oligarquia é transnacional, é global, e é a nível global que opera. Se um Estado diz: vamos tentar lidar com esse problema, por exemplo, criando impostos mais altos para as atividades dessa oligarquia, ela diz: ah, bom, então vamos para outro Estado, o problema é vosso. Neste sentido, o Estado já não opera da forma que costumava. E isso nos últimos anos tornou-se óbvio para todos nós. Portanto, é o Estado que está em apuros.

E que características permitem às instituições da arte assumir o papel de agente de reinvenção do Estado? 
Um dos conceitos para o qual me parece que devemos olhar com atenção é o dos “commons”, um conjunto de valores ou de bens que não têm um proprietário individual, mas colectivo. O Estado manteve para si durante muito tempo a ideia de “commons”, agora parece-me que há oportunidade de generalizar a ideia de propriedade coletiva. E parece-me que as próprias instituições artísticas incorporam já em si o conceito de “common”. As colecções dos museus, por exemplo: de certa forma, são já propriedade partilhada. Apesar de esta ser a Fundação Calouste Gulbenkian e de, basicamente, pertencer à família Gulbenkian, a forma como foi criada permitiu que todos os portugueses sintam alguma propriedade sobre ela. E é ainda mais assim em relação a uma colecção num museu nacional. Portanto, há uma ideia de “common” já inscrita nas instituições artísticas. E esse é um legado sobre o qual podemos construir. Outra coisa é esta estranha função que a arte manteve em toda a sociedade democrática e burguesa que é assumir-se como um espaço de liberdade, um espaço de experimentação. Não é um valor universalmente partilhado, mas é uma assunção comum que a arte é uma esfera onde são permitidas coisas que não são permitidas noutras esferas – a maior parte das pessoas dirá que é importante que a arte seja livre e que os artistas possam fazer o que querem. E isto é uma coisa de que nos podemos aproveitar. Podemos instrumentalizar a ideia de autonomia inscrita na acepção ocidental de arte, que é que a arte faz as suas próprias regras. Podemos instrumentalizar isso para ajudar a resolver a questão do fracasso do velho Estado social e das estruturas do Estado em geral.

“Autonomia” e “instrumentalizar” – são conceitos antagônicos e que se anulam mutuamente. A partir do momento em que se instrumentaliza uma coisa ela deixa de ser autônoma. É uma proposta assustadora nos termos em que a coloca. 
Vivemos tempos assustadores, precisamos de conceitos assustadores para lidar com eles. Essa autonomia é uma posição que a sociedade nos permite ocupar – então vamos usá-la, vamos aproveitar o fato de podermos usufruir dessa liberdade! Temos uma condição diferente da das instituições de educação, por exemplo, que são altamente instrumentalizadas. O tipo de educação que se oferece está hoje diretamente ligado aos mercados, exatamente como acontece em tantos outros setores da sociedade que já pertenceram ao Estado e foram entretanto privatizados, ficando nas mãos da mesma oligarquia internacional de que falava há pouco. O mundo da arte, à sua pequena e impotente escala, é ligeiramente diferente. O que peço é que usemos essa diferença.

Mas, ao pôr esse espaço de liberdade ao serviço seja do que for – neste caso de uma certa perspectiva de ação e construção social –, você não empurra o domínio artístico para o mesmíssimo lugar onde estão as esferas que, precisamente pela sua falta de autonomia, já não servem como plataformas de reinvenção? 
O que estou dizendo é que a arte se oferece como espaço para a experimentação. E defendo essa ideia de experimentação. Mas digo que ela não deve ser apenas estética, deve também implicar-se em termos de organização social. De novo: é qualquer coisa que os puristas, os modernistas, vão rejeitar, mas se virmos a arte como tendo uma função, uma delas tem que ser imaginar qualquer coisa que ainda não existe. Isto é necessário e verdade em qualquer processo criativo, quer seja socialmente criativo, individualmente criativo ou mesmo criativo em termos capitalistas, de criação de um novo produto: o processo de imaginar o que ainda não existe é fundamental – se não conseguimos imaginar, será muito difícil criar. E o que estou a dizer é que se o espaço da arte é já imaginar coisas diferentes das que existem, então porque não imaginar a sociedade? Porque não imaginar uma sociedade diferente da que temos e não apenas aplicações para um vermelho ou verde?

Pode exemplificar?
Sim. Uma das grandes questões nos museus é o que fazer com a herança que recebemos – as nossas coleções. No Van Abbemuseum temos uma coleção de arte moderna. Uma das perguntas é como podemos torná-la mais atual, mais contemporânea. Limitâmo-nos a mostrá-la? Quer seja um Sol LeWitt ou um Lawrence Weiner, mostrar e dizer: “Esta era a cultura que existia nos anos 1970; não era maravilhoso?” Da mesma maneira que podemos mostrar uma urna grega e dizer: “Não era fantástica esta cultura?” Ou será que podemos tornar a coleção relevante face a conceitos contemporâneos? Uma coisa que fizemos com um coletivo dinamarquês, os Superflex: eles copiaram um dos Sol LeWitt da coleção e depois distribuímos as cópias gratuitamente aos visitantes. O que aconteceu foi que a ideia de uma obra de arte conceitual, que se materializou num objeto com um valor de mercado, voltou à sua matriz conceitual – porque o que o Sol LeWitt dizia que importava era a ideia, não o resultado material dessa ideia. Neste projeto, voltamos à ideia original e tentamos atualizá-la para o público de hoje. As pessoas puderam realmente levar uma obra de arte para casa. Houve um momento maravilhoso em que se via as pessoas a saírem do museu com uma obra de arte na mão. Que é o oposto do que um museu é suposto fazer, que é proteger tudo, garantir que não foge. Nós, na verdade, escancaramos as portas. E ao quebrar os protocolos que dizem que não se distribuem as obras de arte dos museus pelo mundo, começámos a atualizar o potencial que existe nessas obras. É um exemplo. Haveria muitos.

Claramente, é contrário à ideia da arte pela arte, acha que a arte deve ter uma função político-social clara e imediata.
Sim. A arte pela arte existiu dentro de uma estrutura socio-politico-econômica específica, um contexto de excesso produzido pela burguesia, que achava que a arte não devia ter uma função porque a sociedade era rica ao ponto de poder conceber um fora do utilitarismo. Nessa sociedade, a arte recebeu um papel específico, um papel que, à sua maneira, também era político. E no período da Guerra Fria essa arte pela arte foi instrumental, servia para provar a liberdade do mundo ocidental por oposição à instrumentalização que o leste fazia da arte e dos artistas. Portanto, tanto em tempos mais recuados como mais recentes, essa ideia existiu em contextos muito específicos. Contextos que já não existem. Faz muito pouco sentido em 2014. E a sua sobrevivência até agora foi, na minha opinião, um acidente histórico, um lastro deixado por regimes anteriores.O que define, para si, uma arte útil?
No museu usamos a expressão espanhola “arte útil”. A ideia da arte como ferramenta [porque, em castelhano, “útil” quer também dizer ferramenta] parece-me mais sedutora do que a ideia de uma arte utilitária. Creio que transmite bem a capacidade da arte em assumir um papel funcional dentro das estruturas de pensamento. E isto implicará determinadas características: uma arte útil terá uma relação real com o mundo, não será apenas simbólica, não usará apenas uma linguagem simbólica, mas fará propostas reais para mudanças reais do mundo real, satisfará talvez uma necessidade ou produzirá um resultado com efeitos fora das instituições da arte. Isto tem antecedentes. Certas formas modernistas, como as ligadas às vanguardas russas, estão muito ligadas a ideias como estas. E se formos até ao século XIX temos as propostas do [crítico de arte e social britânico] John Ruskin, ou as do [artista e fundador do movimento socialista inglês] William Morris, em resistência à industrialização. Um conceito como o de “arte útil” recorda que a arte pode ter uma função genuína na sociedade. O lugar que ocupava e as funções que tinha no Estado-nação da social-democracia estão se desvanecendo, tal como essa ordem do mundo. Temos que encontrar novas justificações para o papel da arte e acho que esta é uma delas.

No entanto, parece um retrocesso.
Se pensarmos que um Jackson Pollock foi profundamente instrumentalizado pelas políticas do período da Guerra Fria, não sei onde fica essa arte pela arte sem uma relação com a sociedade, sem um papel social. Não me parece que a noção do “espectador desinteressado” ainda seja especialmente válida. Não me parece que hoje ainda seja possível ocupar a posição de alguém que pode produzir julgamentos estéticos tendo por base o seu “desinteresse”, a sua exterioridade e neutralidade. Vivemos tempos de necessidade, tempos em que temos que perceber o papel da arte. E ela sempre teve um papel, nunca foi não instrumental. A única questão é que durante muito tempo nos recusamos a ver isso. Em suma: acho que a questão é como é que instrumentalizamos a arte e não se podemos instrumentalizá-la.

Ou seja, é a crise que, para si, leva a uma redefinição do papel da arte?
Quando falamos da crise, no singular, parece haver apenas uma [a financeira e econômica]. Não é verdade. Uma das crises é ambiental. Algumas pessoas não aceitam a sua existência, mas, genericamente, vemos que os recursos de que precisamos para viver bem exigem sistemas de valores e padrões comportamentais diferentes [dos que temos adotado]. Depois, também há uma crise política, uma crise de representação – os políticos já não nos representam. Diria que a maior parte das pessoas que viveram as velhas democracias não sentem que o atual sistema seja representativo delas ou das suas comunidades de forma eficaz – o Syriza [coligação de esquerda grega] ou o [partido espanhol] Podemos são exemplo da forma como continuamos a batalhar por uma representatividade, mas o próprio sistema reage contra. É uma tragédia, mas acho que temos que ser honestos: estamos nos encaminhando para uma pseudodemocracia em que os pseudo processos eleitorais e os sistemas de pseudo representatividade mascaram uma oligarquia. Uma oligarquia sendo um grupo de pessoas bastante fixo – o chamado 1%, a classe dominante – que basicamente manipula as decisões políticas de forma a que os seus interesses sejam protegidos acima de quaisquer outros. Acho que, neste momento, todos vemos isto e percebemos que essa oligarquia se mantém intocada. Mas, paradoxalmente, a força e poder dessa oligarquia também se tornaram maiores. Se olharmos para as consequências da crise, constatamos que a oligarquia maximizou o seu potencial de lucro. Fê-lo às custas da maioria das pessoas. E as mídias e a maioria das forças de persuasão usadas para nos convencer de que isso é aceitável dedicam-se a proteger esses interesses. Ou seja: vivemos tempos oligárquicos, a questão é o que vamos fazer a esse respeito.

Até que ponto é que a vigência dessa oligarquia afecta os museus e outras instituições da arte?
Enormemente. Primeiro, porque ao levar o Estado a retirar-se [a oligarquia] alarga cada vez mais o seu espectro de atuação. A maioria dos museus foi criada a partir de fundos públicos – e isto tanto é verdade para os Estados Unidos, com os incentivos fiscais, como para a Europa, com o financiamento público directo. Entretanto, começaram a abrir cada vez mais museus privados. O que levou a uma explosão brutal do mercado da arte, que foi uma consequência do excesso de riqueza que a oligarquia produz. E como o domínio público tem muito menos riqueza do que o privado, torna-se cada vez mais difícil reter certo tipo de obras nos museus públicos. Ou seja, o interesse coletivo começou a ver-se cada vez menos representado, em prol dos interesses dos colecionadores privados. E houve uma mudança nas estruturas de poder nos museus, que passaram da dependência de estruturas democráticas, como as Câmaras Municipais e os ministérios da Cultura, para a dependência de conselhos administrativos normalmente compostos por membros diretos da oligarquia. As fundações privadas, por exemplo: uma vez mais, são instrumentos usados pela oligarquia para libertar alguns dos seus lucros, algum do seu excesso financeiro. E os museus estão cada vez mais nas mãos destas figuras oligárquicas. Dantes, para verem os seus projectos financiados, os directores dos museus tinham que ir em visita suplicante a ministros democraticamente eleitos, agora têm que ir em visita suplicante a oligarcas.