quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

A PRESENÇA GAY ENTRE FRONTEIRAS

Em resposta a campanha internacional lançada por Israel para se autopromover, eles afirmam: “não pode haver libertação sexual em meio ao apartheid”
Por Vinicius Gomes 
Israel é um refúgio seguro para homossexuais palestinos”? “Como vocês lidam com seu principal inimigo, o Islã”? Ativista gay na Cisjordânia, membro organização Al-Qaws (que significa “arco-íris” em árabe)o palestino Ghait Hilal dá-se ao trabalho responder estas peguntas, num texto recente, publicado por Eletronic Intifada e traduzido por RebeliónEle o faz de forma irônica e habilidosa. Embora viva numa sociedade conservadora, quer enfrentar uma campanha de desinformação lançada pelo governo de Telaviv há anos, para justificar a ocupação da Palestina sugerindo que que em Israel há liberdade sexual e de gênero.
Ao longo de oito respostaS, Hilal desfaz este mito. Às vezes, zomba das próprias questões: “o Muro do Apartheid está cheio de portas brilhantes cor-de-rosa, prontas para admitir aqueles que façam poses estupendas”, brinca ele. Em ouros, dispõe-se a enfrentar questões políticas complexas. Considera, por exemplo, que “os principais grupos LGTB do Norte [do planeta] querem fazer crer que os homossexuais vivem num muno à parte, conectados a suas sociedades unicamente como vítimas dda homofobia. Mas não se pode conqusitar a liberação homessexual enquanto existam o apartheid, o capitalismo e outras formas de opressão”. 
O ponto central que Hilal quer evidenciar é: o principal problema que qualquer palestino enfrenta é a presença do exército de Israel em seu cotidiano. O islamismo, com todas as suas imagens caricatas de apedrejadores-de-adúlteras ou cortadores-de-mão-de-ladrões, é apenas a religião sob a qual foram criados – e que escolhem seguir ou não, como fazem os que vivem em países majoritariamente cristãos ou judeus.
campanha de Israel a qual o texto responde comeou em 2005, com a ajuda de publicitários norte-americanos, e é apelidade de “pinkwashing”. Procura projetar, em todo o mundo, a imagem de um Israel “relevante e moderno”; e sua capital, Tel Aviv, como um ponto de destino internacional para gays. É considerada uma estratégia deliberada para omitir a contínua violação dos direitos humanos dos palestinos por trás de uma imagem de tolerância.
É principalmente isso que a Al-Qaws, junto com outras organizações, combate e que não existe uma “grande família rosa feliz” entre homossexuais palestinos e israelenses. Ou seja, ser gay não elimina a dinâmica de poder entre colonizados e colonizadores.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

A NATUREZA DA ARTE

Para muitos artistas, críticos e observadores da arte o momento atual está mais voltado para a descoberta de “talentos” do que para segmentos, conteúdos embasados e  renovadores que abordem a tarefa artística em toda sua complexidade.
 Atender ao mercado é a meta atual para se chegar ao “êxito” rápido, basta obedecer e seguir os seus requisitos e  satisfazer a demanda. Esse é o novo rumo para se atingir o sucesso
A natureza da arte é sempre colocada em questionamento, inclusive para legitimar o artista e, consequentemente sua obra. Mediante essa situação nada mais coerente que cada um defenda o seu ponto de vista.
Vários artistas “contemporâneos” afirmam que a subjetividade na arte é  fácil de ser captada, como é o caso do artista conceitual americano Joseph Kosuth .Apesar de ele deixar claro que: “as questões da arte devem ser vistas com sutileza e complexidade” suas obras são herméticas. 
Joseph   reconhece a  genialidade de Walt Disney , no entanto o classifica como um gênio comercial e não um artista conceituado. Quanto à arte popular ele acredita que esta não estabelece o fluxo necessário para novos conhecimentos e como tal não teria como permanecer viva. Acompanhando suas obras  utiliza de palavras para o entendimento da mensagem -  A emblemática: "Uma e três cadeiras” 1965 é  exemplo disso.
    Joseph Kosut  critica o mercado de arte dos últimos 15 anos, classificando o como batedor de recordes de vendas e preços altos sem se preocupar com a qualidade. Afirma que o glamour do mercado, também aparece como um segmento que só traz malefícios . Sugere à atenção para a história afirmando, entre linhas, que ela fomentará a avaliação correta dessa vasta produção atual não a curto prazo.
   Apesar das opiniões proferidas por ele, a sua trajetória está vinculada ao constante espaço que a mídia dá, pois é
 um artista bem sucedido nas vendas da sua produção.  Cultua suas aparições como um pop-star. Não o vejo distanciado de um corporativismo que ele diz ser contrário. “Arte não é beleza” é uma das suas afirmações para atrair ouvintes e futuros colecionadoresChama de entretimento profissional e arte decorativa tarefas artísticas que não acrescentam em nada ao nosso tempo.
 O cenário cultural atual na produção artística é difícil de ser avaliado. Não bastam frases de efeito para visualizar esse pseudo estranhamento e tentar  aproximar o espectador para uma "nova" estética, ou ruptura desejada.
O público, para muitos estudiosos, fica aprisionado  na arte conceitual e vê-se obrigado, na sua quase totalidade   a ler textos explicativos para entendê-la. Os defensores de uma arte de vanguarda de efeitos, entre eles Joseph Kosuth  afirma: "O surgimento de obras sem qualidades e valorizadas, existem cada vez mais na nossa sociedade, uma distorção, porque as pessoas com poder apenas visam o lucro e não querem elucidar qual o verdadeiro papel do artista e da arte". Enfim, cada um conta a sua história.
     Vicente de Percia

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

DIÁLOGO COM FERREIRA GOULART POR DIOMIRA FARIA -MEMBRO DA BOW ART INTERNATIONAL.

                           Pintura rupestre da Serra da Cavivara em Raimundo Nonato, Piaui, Brasil
 DIOMIRA FARIA.
A leitura do comentário de Ferreira Goulart sobre a arte contemporânea me inspirou a escrever este ensaio, a defender a arte, mas não será uma defesa da arte contemporânea, tampouco da  moderna. Mas sim da arte primitiva que tanto me lembrei a partir do desabafo de Goulart. Será que a arte primitiva, não somente daqueles que desenhavam nas paredes das cavernas e grutas, mas incluindo a arte dos aborígenes da Austrália ou dos esquimós ou ainda dos índios Xakriabá sempre teve como objetivo a estética?  Pois disse Goulart sobre os urubus nas gaiolas: “...que de belo não tem nada nem mantém qualquer relação com o que, ao longo de milênios, é tido como arte.”  Será que algum sentido universal de beleza foi sempre o que motivou os artistas? Ao estudar a arte primitiva, seja representada pelas formas pintadas em paredes de cavernas no paleolítico, evoluindo para pinturas nos corpos dos indígenas, bordados com motivos da natureza, marcas no corpo de jovens guerreiros, as figuras presentes nos totens, alguns antropólogos concluíram que os objetivos pretendidos com estas representações são os mais diversos, incluindo a preparação para a guerra, o acasalamento, o fortalecimento da identidade do grupo, enfim, são símbolos que expressam aspectos culturais de determinado coletivo humano. Se pode dizer que cada manifestação apresenta uma “linguagem” artística que é inteligível para seu grupo. Se estamos de acordo com esta argumentação, podemos constatar que não é a estética o objetivo final destas diversas manifestações artísticas e sim a pretensão de expressar, difundir, transmitir ideias, uma forma de pensamento que utiliza a semiótica (sistema de símbolos) e muita técnica para demonstrar ideais que podem ser visíveis, audíveis e tactíveis. Esta característica sim é genuinamente humana. O que me pergunto é qual foi a intenção do autor desta obra tão contestada por Goulart ou qual mensagem está querendo passar para seu coletivo, ou seja, nós mesmos, a partir de uma obra que coloca urubus em uma gaiola.  Como entender? Comungo com Goulart no sentido que ficamos atordoados com manifestações artísticas as quais não conseguimos decodificar (entender) a mensagem existente. Vou dar um exemplo de algo que aconteceu comigo faz uns seis meses em uma exposição no centro cultural da UFMG em Belo Horizonte. Havia uma exposição de um jovem artista, com uma série de fotos e áudio. O áudio em francês relatava as receitas gastronômicas preparadas por um chefe de cozinha. As fotos continham o retrato do chefe e os pratos prontos. Todos usavam um calango, isto mesmo, um calango bem delineado como a carne a ser oferecida junto com arroz, fritas ou legumes. Havia uma senhora ao meu lado indignada, desorientada, perguntando a qualquer um que entrasse no recinto o que era aquilo, se era mesmo um calango...Foi embora da exposição sem respostas, sem compreensão, incomodada e acredito que nunca mais irá entrar naquele lugar. Entender a mensagem que a arte quer passar nem sempre é fácil, principalmente a arte contemporânea que se sente livre para usar quaisquer materiais e recursos existentes para transmitir a intenção do artista, suas ideias, pensamentos e mensagens. Necessitamos de familiaridade, hábito, de conhecimento para decodifica-la. Pessoalmente não gosto de urubus, dentro ou fora de gaiolas. Mas, gostaria de conhecer a intenção do artista com seu trabalho, fico curiosa com estas coisas. Quando vou a exposições, procuro ler os textos disponíveis que podem ajudar na comunicação entre a arte e o observador. O que me atordoa, isto sim, é quando as exposições colocam apenas uma placa com o título da obra, o ano, o material utilizado e nada mais, como se todos fossemos conhecedores de arte, isto sim uma insensatez. Neste caso Goulart fico tão indignada como você, mas não devido aos urubus... 

domingo, 6 de outubro de 2013

NO CENTRO DA SELVA

Só recentemente reconhecemos imensa riqueza humanitária das civilizações indígenas. Depois de cinco séculos de canibalização, será possível um futuro comum?
Por Marcelo Degrazia
Mesmo quando o cientista político norte-americano Samuel P. Huntington escreveu O Choque de Civilizações, ele se referia a conflitos entre culturas relativamente extensas e vigorosas. Em sua classificação, o devoramento de civilizações por outras, como temos feito com as nações indígenas ao longo dos séculos, não poderia jamais receber o nome de choque; talvez nem de conflito, devido à brutal incompatibilidade técnica entre elas. Aqui a classe é de canibalização. Pois é nesses termos, bem mais amplos que os projetos de lei contra os quais semobilizam agora os índios e amplos setores da sociedade brasileira, que gostaríamos de enquadrar a velha e até aqui insuperável questão indígena.
Parte da história está contada no indispensável Relatório Figueiredo, de 1967. Trata-se de uma compilação de crimes realizados sobretudo contra populações indígenas, escrito pelo procurador Jader de Figueiredo Correa a partir de dados de Comissão de Inquérito sobre a atuação do Serviço de Proteção aos Índios. O relatório, de 68 páginas, acompanha um processo de 20 volumes com 4.942 folhas, mais 6 anexos com 500 folhas.
Ali estão registrados cárcere privado e trabalho escravo de índios, tortura, roubo de terras, abuso sexual, esbulho, mortes em massa, guerra bacteriológica, ataque aéreo com dinamite, venda irregular de gado indígena etc. Os crimes, quase todos documentados e com testemunhas, muitas vezes foram mutuamente acobertados por funcionários do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), inclusive com queima de arquivos praticada em geral pelos próprios servidores públicos do extinto órgão – que deu lugar à Funai ainda em 1967.
Nas palavras de Figueiredo, “O índio, razão de ser do SPI, tornou-se vítima de verdadeiros celerados, que lhe impuseram um regime de escravidão e lhe negaram um mínimo de condições de vida compatível com a dignidade da pessoa humana. (…) Venderam-se crianças indefesas para servir aos instintos de indivíduos desumanos. Torturas contra crianças e adultos, em monstruosos e lentos suplícios, a título de ministrar justiça.”
Tribos inteiras foram dizimadas, nisso que poderíamos chamar de genocídio à brasileira, em regimes democrático e ditatorial. Mais adiante o procurador afirma, com extrema lucidez: “A falta de assistência, porém, é a mais eficiente maneira de praticar o assassinato.” Irretocável. “A Comissão viu cenas de fome, de miséria, de subnutrição, de peste, de parasitose externa e interna, quadros esses de revoltar o indivíduo mais insensível.”
Não precisamos voltar a Cabral para o registro de etnocídios em nosso vasto território. Além do extermínio patrocinado por portugueses e desses horrores compilados no relatório, que ocuparam algumas décadas do século 20, a reincidência criminosa da civilização ocidental contra as populações indígenas atravessou todos esses séculos e ainda ocorre nos dias de hoje.
Não são poucas as ocorrências de invasão por parte de grileiros, posseiros e fazendeiros, em diversas regiões do país, em conflitos que levam à morte de índios ou à expulsão deles de suas terras sagradas. Podemos encontrá-los na beira de estradas do Mato Grosso ou no centro de Porto Alegre, vidas em agonia, tristes imagens de seres humanos esbulhados de sua tradição milenar.
Canibalização civilizatória. Além das tribos contatadas, existem no Brasil dezenas de grupos indígenas que jamais trocaram miçangas ou ouro por espelhinhos , que sabem da existência de nossa subcivilização latino-americana (na classificação de Huntington…) apenas porque veem cruzar seus céus uns pássaros roncadores de estranhas asas, pois nunca as batem no ar como fazem a ararinha-azul ou a araponga-da-amazônia.
Segundo o IBGE, são 900 mil indígenas distribuídos por 305 povos, falam 274 línguas (já foram mais de mil) e ocupam apenas 13% do território que, num passado longínquo, dividiam inteiramente, entre flechadas e beijos, com centenas de outros povos já extintos. Mais os povos em isolamento voluntário – pelo menos 28 grupos de existência confirmada pela Funai.
Ainda há, portanto, no Brasil, milhares de seres humanos descendentes diretos dos povos originários da terra onde os brasileiros vivem – povos que nos últimos 10 mil anos conheceram no máximo a migração interna. Seus antepassados andavam por aqui antes de Maomé e Cristo terem nascido, antes dos livros do Antigo Testamento terem sido sequer sonhados, antes das pirâmides do Egito serem erguidas para a glória dos faraós e ainda muito antes das tabuinhas cuneiformes dos sumérios.
Nem Huntington lhes negaria a condição de civilização, possivelmente até no plural. São povos que dispensam a escrita, não precisam de história nem de literatura, porque, muito antes de nós, aprenderam algo que nunca conhecemos e que talvez nunca venhamos a descobrir: a arte de viver em natureza.
Tesouro étnico. Os povos originários são a memória anterior à humanidade, tal qual a conhecemos. Darcy Ribeiro disse que, no seu estudo de doutorado, fez amizade com um cacique capaz de recitar mais de mil nomes de sua árvore genealógica. Eles eram e são pela tradição, zelam por esse tesouro que é toda a existência de um tempo sem tempo, em especial os povos ainda fechados em seu círculo fora da história, como são os povos da floresta que ainda não tiveram contato com o Ocidente, nesses últimos 10 mil anos – para o bem deles próprios.
Essa é a imensurável riqueza confiada a nós, brasileiros (aqui incluídos os povos indígenas mais ou menos aculturados), pelos acasos da história. Que outro país tem a dádiva de conviver com suas matrizes culturais ainda vivas? Já exterminamos (nós e os portugueses) quase a totalidade desses “outros” de que nos jactamos, ao chamá-losnossos índios. Toda vez que nos cobram maior cuidado com esses povos originários, patrimônio vivo de toda a humanidade, ainda somos tentados a dar a resposta oferecida aos alemães, quando eles já estavam reconstituindo grande parte da Floresta Negra. Como afirmação de soberania e independência, dizíamos ter o direito de derrubar nossas matas, como eles derrubaram as deles. Por certo, queremos nos igualar também aos norte-americanos, que avançaram suas fronteiras agrícolas e de mineração até o extermínio praticamente completo de seus povos indígenas, patrocinado pelo Estado e com o apoio do Exército.
Já está mais que na hora de pensarmos em frear nosso avanço e começar o árduo e custoso trabalho de reconstruir o que estamos a ponto de perder por inteiro. Avançar mais para criar mais miséria, em nome da produção de minério e de grãos (o problema maior da fome nunca foi a falta de alimentos), é a prova cabal do fracasso da civilização ocidental, que até aqui não soube desenvolver um sistema econômico humanitário.
A conta desse holocausto civilizatório não pode mais recair sobre os ombros dos povos da floresta (sobre os ombros de mais nenhum povo), pois se estamos condenados a desaparecer sem o avanço contínuo da economia, deveríamos ter a humildade de aprender com quem sobreviveu, durante milênios, num equilíbrio homoestático com a natureza.
Se sobre genocídio já nada mais temos a aprender com alemães e estadunidenses, podemos ao menos tomar lições sobre como se reconstrói. São hoje 900 mil índios, mas dentro de vinte, trinta anos, poderão talvez ser 5 milhões. Será nossa maior riqueza humanitária, ao lado das populações tradicionais (incluindo as quilombolas), insuperável contribuição para a humanidade, a expressão real e concreta daquilo que muitos gostam de chamar de tolerância, num tom ufanista tal que poderíamos estendê-la até o Oriente Médio (suposto traço de caráter que no passado chamávamos de democracia racial).
Estamos chegando ao coração da selva, e lá não há trevas, mas nações indígenas milenares levando vidas fora do nosso alcance. Em nome do que seja, menos ainda da riqueza econômica, não podemos sacrificar as últimas reservas de uma humanidade mais feliz do que a nossa. Se isso acontecer, passaremos à história como coveiros da última nação indígena.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

SOMOS TODOS PRECÁRIOS, PRINCIPALMENTE COM UM CAPITALISMO SELVAGEM

“Somos todos precários”, afirma Guy Standing ao final de seu estudo sobre essa nova realidade do trabalho, nascida do cruzamento do “proletariado” com o “precário”. Vivemos em um capitalismo do desejo, da informação, das marcas, do projeto, do dinheiro e das finanças virtuais. Neste capitalismo de projeto, o precariado é aquela pessoa aturdida, que gastou suas economias em um perfume propagandeado, mas que não obteve o sucesso social. Ao contrário do excluído tradicional, ele é convidado para a festa – mas batem-lhe a porta à cara. A condição essencial do precariado é a frustração. Ela pode transfornar-se em vontade política de mudança? Não é fácil. Hoje, o precariado opta mais pela teatralidade das protestos mais numerosos que as manifestações tradicionais esquerda ou direita – mas capazes, no máximo, de constranger o Estado, não de transformá-lo.
Já faz trinta anos que a direita expôs sua receita e a repetiu até convertê-la em um novo senso comum: desmontar o Estado, privatizar, desideologizar parlamentos e partidos, controlar a mídia, financiar fundações e universidades, combater os “excessos de democracia”, submeter o Sul por meio da dívida, aumentar a exploração da natureza e financiar a economia através do déficit público e eliminação dos limites à expansão financeira. A esquerda social-democrata abraçou o neoliberalismo sob a égide da “terceira via”. A esquerda não social-democrata se social-democratizou e começou a entoar o canto repetido do retorno ao Estado social perdido (que ontem criticava). A direita passou três décadas fazendo seus deveres. Já a esquerda, não. A precarização generalizada do trabalho não esteve ausente nessas décadas. Na verdade, ninguém moveu um dedo para evitar que isso acontecesse.
O precariado, diz Standing, é uma nova classe social em formação que, embora ainda não seja uma “classe para si” (quer dizer, que se reconhece e luta por seus próprios interesses), tem já uma série de características específicas que nos convidam a entendê-la como uma entidade que promete ação coletiva própria. O precariado vive uma flexibilidade laboral nem sempre desejada e uma constante sensação de levar uma vida de má qualidade. Não equivale nem aos proletários tradicionais nem às classes médias superexploradas. Tampouco uma “subclasse” ou “a camada inferior da classe trabalhadora”. Quer boa parte das garantias dos trabalhadores tradicionais, mas não uma vida profissional como a de seus pais ou avós. Suas incertezas e inseguranças são peculiares. Consumistas e carentes de memória, seus membros parecem elegantes aos olhos dos mais velhos – que eles enxergam como dinossauros privilegiados.
Embora os sindicatos não o compreendam direito, o precariado existe e tem suas próprias características, ainda que seja apenas porque lê sua realidade de forma diferente. São pessoas bem-formadas, às quais se prometeu (na escola, na faculdade, na televisão, na publicidade, no exemplo de quem teve sorte) um mundo divertido, confortável e criativo – que nunca chega. São aqueles que viram a escada pela qual subiam ser chutada pelos que vieram antes deles. Mas que ainda não parecem ter pressa (como teve a classe operária, desde o final do século XIX). São pessoas com certa rede familiar (que se sustenta cada vez mais nos avós, mas que também está se precarizando), com uma formação que lhes permite sonhar com um futuro profissional brilhante (ao contrário do ocorreria com um proletário tradicional, condenado a um realismo inclemente). São mulheres e jovens (em sociedades onde as mulheres estão lutando para conseguir um espaço de igualdade e diferença, e onde há um aumento da esperança de vida que prolonga a juventude até os quarenta). São receptivos às mensagens de rebeldia e inconformismo herdados de 68. São urbanos (resultado do êxodo do campo para a cidade a partir dos anos 60 do século XX) e, portanto, sujeitos à condição paradoxal de estar profundamente conectados às redes, ao mesmo tempo em que estão desconectados do mundo real.

sábado, 28 de setembro de 2013

A QUESTÃO DA ARTE CONTEMPORANEA

FERREIRA GULLAR
Porque a vida não basta
A arte contemporânea acabou com a crítica; isso é expressão da crise por que passam as artes plásticas
Embora tenha frequentemente criticado o que se chama de arte contemporânea, devo deixar claro que não pretendo negá-la como fato cultural. Seria, sem dúvida, infundado vê-la como fruto da irresponsabilidade de alguns pseudoartistas, que visam apenas chocar o público.
Há isso também, é claro. Mas não justificaria reduzir a tais exemplos um fenômeno que já se estende por muitas décadas e encontra seguidores em quase todos os países.
Por isso, se com frequência escrevo sobre esse fenômeno cultural, faço-o porque estou sempre refletindo sobre ele. Devo admitir que ninguém me convenceria de que pôr urubus numa gaiola é fazer arte, não obstante, me pergunto por que alguém se dá ao trabalho de pensar e realizar semelhante coisa e, mais ainda, por que há instituições que a acolhem e consequentemente a avalizam.
O fato de negar o caráter estético de tais expressões obriga-me, por isso mesmo, a tentar explicar o fenômeno, a meu ver tão contrário a tudo o que, até bem pouco, era considerado obra de arte. Não resta dúvida de que alguma razão há para que esse tipo de manifestação antiarte (como a designava Marcel Duchamp, seu criador) se mantenha durante tantos anos.
Não vou aqui repetir as explicações que tenho dado a tais manifestações, as quais, em última análise, negam essencialmente o que se entende por arte. Devo admitir, porém, que a sobrevivência de tal tendência, durante tanto tempo, indica que alguma razão existe para que isso aconteça, e deve ser buscada, creio eu, em certas características da sociedade midiática de hoje. O fato de instituições de grande prestígio, como museus de arte e mostras internacionais de arte, acolherem tais manifestações é mais uma razão para que discutamos o assunto.
Uma observação que me ocorre com frequência, quando reflito sobre isso, é o fato de que obra de arte, ao longo de 20 mil anos, sempre foi produto do fazer humano, o resultado de uma aventura em que o acaso se torna necessidade graças à criatividade do artista e seu domínio sobre a linguagem da arte.
Das paredes das cavernas, no Paleolítico, aos afrescos dos conventos e igrejas medievais, às primeiras pinturas a óleo na Renascença e, atravessando cinco séculos, até a implosão cubista, no começo do século 20, todas as obras realizadas pelos artistas o foram graças à elaboração, invenção e reinvenção de uma linguagem que ganhou o apelido de pintura.
Isso não significa que toda beleza é produto do trabalho humano. Eu, por exemplo, tenho na minha estante uma pedra --um seixo rolado-- que achei numa praia de Lima, no Peru, em 1973, que é linda, mas não foi feita por nenhum artista. É linda, mas não é obra de arte, já que obra de arte é produto do trabalho humano.
Pense então: se esse seixo rolado, belo como é, não pode ser considerado obra de arte, imagine um casal de urubus postos numa gaiola, que de belo não tem nada nem mantém qualquer relação com o que, ao longo de milênios, é tido como arte. Não se trata, portanto, de que a coisa tenha ou não tenha qualidades estéticas --pois o seixo as tem-- e, sim, que arte é um produto do trabalho e da criatividade humana. Se é boa arte ou não, cabe à crítica avaliar.
E toca-se aqui em outro problema surgido com essa nova atitude em face da arte. É que, assim como o que não é fruto do trabalho humano não é arte, também não é possível exercer-se a crítica de arte acerca de uma coisa que ninguém fez.
O que pode o crítico dizer a respeito dos urubus mandados à Bienal de São Paulo? A respeito de um quadro, poderia ele dizer que está bem mal-executado, que a composição é pobre ou as cores inexpressivas, mas a respeito dos urubus, que diria ele? Que não seriam suficientemente negros ou que melhor seria três em vez de dois? Não o diria, pois nada disso teria cabimento. Não diria isso nem diria nada, porque não é possível exercer a crítica de arte sobre o que ninguém fez.
Desse modo --e inevitavelmente--, a chamada arte contemporânea acabou também com a crítica de arte. Isso tudo é, sem dúvida, a expressão da crise grave por que passam hoje as artes plásticas.
Costumo dizer que a arte existe porque a vida não basta. Negar a arte é como dizer que a vida se basta, não precisa de arte. Uma pobreza!

terça-feira, 24 de setembro de 2013

CRÍTICO DE ARTE VICENTE DE PERCIA NA SUA POSSE COMO PRESIDENTE DO CEAQ-BRASIL

Um dos momentos da gestão do escritor e crítico de artes plásticas no " Centre d'Etude Sur l' Actual et le Quotidien"(CEAQ-BRASIL) quando proferiu sua palestra acerca da globalização na arte e o papel da mídia. (parte do seu texto)

......................................................................
Se a mídia funciona como instrumento de estimulação e de legitimação hedonistas, contribui, paralelamente, para destilar uma situação de insegurança, amplificando os temores cotidianos: medo alimentar, medo de vírus, da pedofilia, da obesidade, da violência urbana, da poluição. Quando liberado da sujeição ao coletivo, o indivíduo acha-se cada vez mais submetido aos poderes do medo e da inquietude:
Pelo sensacionalismo, a mídia constitui uma extraordinária caixa de ressonância dos perigos que planam sobre nossas existências. Por um lado, a mídia mergulha no lúdico e nas distrações superficiais; por outro lado, não pára de intensificar as imagens de um mundo repleto de catástrofes e de perigos. (LIPOVETSKY, 2004: 76-77).
As grandes mobilizações de caráter emocional só podem ser compreendidas se vinculadas ao triunfo dos valores hedonistas, lúdicos e psicológicos amplamente veiculados pelos sistemas de comunicação (LIPOVETSKY, 2004). Para estes, a espontaneidade dos afetos, a vida no presente e a liberdade nos engajamentos adquiriram uma legitimidade de massa.

Um "manual" de instruções para as escolhas

O indivíduo moderno precisa de boas razões para seguir seu Deus e suas crenças, afirma Chagas. No entanto, além dos diferentes deuses e crenças religiosas de que dispomos, hoje, como medidas paliativas para nosso mal-estar, temos inúmeras outras ofertas de orientação para a vida. Elas determinam o que devemos fazer para evitar medos, incertezas e insuficiências. "Elas oferecem, além de outras coisas, a quem procura o auto-conhecimento, a receita da felicidade plena, 'aqui e agora', 'na Terra'." (CHAGAS, 2001:25).
Em relação à reflexividade constituinte da sociedade moderna, consideremos, como explica Giddens (2002), que o indivíduo vive uma biografia reflexivamente organizada em termos do fluxo de informações sociais e psicológicas sobre os possíveis modos de vida. A modernidade representa uma ordem pós-tradicional que suscita constantes decisões sobre o comportamento, representadas por questões referentes ao que vestir ou ao que comer, por exemplo. Essas decisões fazem referência à auto-identidade. Giddens alerta para a consciência relativa que a identidade do eu pressupõe: é aquilo de que o indivíduo está consciente no termo "autoconsciência". A auto-identidade é algo que deve ser criado e sustentado rotineiramente nas atividades reflexivas do indivíduo.
No nível do eu, a escolha funciona como um componente fundamental da atividade cotidiana. Giddens aponta para o fato de que todas as tradições são efetivamente escolhas entre uma gama indeterminada de padrões possíveis de comportamento, mas que, por definição, a tradição, ou os hábitos estabelecidos, ordena a vida dentro de canais relativamente fixos. O indivíduo deve fazer escolhas referentes a seu estilo de vida , é obrigado a fazê-lo. Cada uma das decisões que uma pessoa toma diariamente contribui para as rotinas que determinam estilos de vida. Todas as escolhas são decisões não só sobre como agir, mas também sobre quem ser.
Padrões gerais de estilo de vida são menos diversos que a pluralidade de escolhas disponíveis nas decisões diárias e mesmo nas decisões estratégicas de prazo mais longo (GIDDENS, 2002). Um estilo de vida envolve um conjunto de hábitos e orientações, tendo determinada unidade que liga as opções em um padrão mais ou menos ordenado. Estando comprometido com determinado estilo de vida, o indivíduo necessariamente avalia várias opções como inadequadas a ele, da mesma forma que julga os outros com quem interage. Além disso, a seleção ou criação de estilos de vida é influenciada por pressões de grupos e completadopela visibilidade de modelos, assim como pelas circunstâncias socioeconômicas. Como envelhecer melhor, dormir melhor, relaxar e comer melhor são questões apontadas por Lipovetsky como solucionáveis pelos mais variados livros que funcionam como guias para um indivíduo que quer soluções eficazes e técnicas para os diversos problemas e questões da vida.
Como descreve Chagas, o sujeito moderno tem o desejo de ser o único e o melhor de todos. Essa é uma crítica que, de certa forma, acompanha o raciocínio de Bauman e Giddens. Ora, se cada indivíduo tem a ambição de ser o melhor e se o discurso de auto-ajuda alimenta essa ilusão, inevitavelmente verificamos a ineficácia dessa promessa, já que, obviamente, nem todos podem ocupar posições vantajosas, pelo menos não a todo o mundo e em qualquer âmbito.
O surgimento de novos estilos de vida afeta a produção, o trabalho e o cotidiano de cada indivíduo. Os valores se transformam e tornam obsoleto para hoje aquilo que valia ontem, da mesma forma que o futuro próximo pode desmerecer aquilo que valorizamos agora.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

CONCEITOS PARA REVALIDAR A OBRA DE ARTE

   
Para muitos artistas, críticos e observadores da arte o momento atual está mais voltado para a descoberta de “talentos” do que para segmentos, conteúdos embasados e  renovadores que abordem a tarefa artística em toda sua complexidade. Atender ao mercado é a meta atual para se chegar ao “êxito” rápido para tal basta obedecer e seguir os seus requisitos e  satisfazer a demanda. Esse é o novo rumo para se atingir o sucesso. A natureza da arte é sempre colocada em questionamento, inclusive para legitimar o artista e consequentemente sua obra. Mediante essa situação nada mais coerente que cada um defenda o seu ponto de vista.
Vários artistas “contemporâneos” afirmam que a subjetividade na arte é  fácil de ser captada, como é o caso do artista conceitual americano Joseph Kosuth. Apesar de ele deixar claro que: “as questões da arte devem ser vistas com sutileza e complexidade” suas obras são herméticas. Joseph Kosuth   reconhece a  genialidade de Walt Disney, no entanto o classifica como um gênio comercial e não um artista conceituado. Quanto à arte popular ele acredita que esta não estabelece o fluxo necessário para novos conhecimentos e como tal não teria como permanecer viva. Kosuth  utiliza as palavras para complementação  e entendimento da sua obra, a emblemática obra: ”Uma e três cadeiras” 1965 é um exemplo disso.
                Joseph Kosuth critica o mercado de arte dos últimos 15 anos, classificando o, apenas, como batedor de recordes de vendas e preços altos sem se preocupar com a qualidade. Afirma que o glamour do mercado também aparece como um segmento que só traz malefícios . Sugere à atenção para a história afirmando, entre linhas, que ela fomentará a avaliação correta dessa vasta produção atual não a curto prazo. Apesar das suas opiniões, a sua trajetória está vinculada a sua presença constante na mídia e ser um artista bem sucedido nas vendas da sua produção.   Cultua suas aparições como um pop-star. Não o vejo distanciado de um corporativismo que ele diz ser contrário. “Arte não é beleza” é uma das afirmações suas para atrair ouvintes e futuros consumidoresChama de entretimento profissional e arte decorativa tarefas artísticas que não acrescentam em nada ao nosso tempo.
 O cenário cultural atual na produção artística é difícil de ser avaliado. Não basta frases de efeito para visualizar esse pseudo estranhamento e tentar sem discernimento aproximar o espectador para uma "nova" estética, ou ruptura desejada..O público para muitos estudiosos fica aprisionado  na arte conceitual e vê-se obrigado, na sua quase totalidade desse tipo de produção, a ler textos explicativos para entendê-la. Os defensores de uma arte de vanguarda de efeitos, entre eles Joseph Kosuth  afirma: O surgimento de obras sem qualidades e valorizadas, existem cada vez mais na nossa sociedade, uma distorção, porque as pessoas com poder apenas visam o lucro e não querem elucidar qual o verdadeiro papel do artista e da arte. Enfim, cada um conta a sua história.
Vicente de Percia
Art-critic

terça-feira, 6 de agosto de 2013

MUDANÇA

Jovem pensador político italiano sustenta: declínio da representação reflete mudanças sociológicas profundas. Estado e partidos perderão seu monopólio. Mas que virá depois?
Por Christophe Ventura,Traduzido por Cristiana Martin
Desde 2011, diversos choques contestatórios percorrem o mundo em diferentes regiões: sul da Europa, mundo árabe, América do Norte – Canadá e Estados Unidos – Turquia, América do Sul e Ásia.
Além das especificidades de cada um, todos esses movimentos partilham de pontos comuns: eles se ampliam, rejeitam as políticas de austeridade, a corrupção e criticam os sistemas políticos e as ações (e até a falta delas) dos Estados.
Nesse contexto, os partidos políticos, principalmente os do governo (tanto os de direita como os de esquerda), são interpelados e vilipendiados – para não dizer jogados ao descrédito público. Esta “crise da política tradicional” ja foi largamente comentada e analisada.
É provavel que tenha atingido seu paroxismo na Itália, onde engendrou uma nova situação: aumento generalizado (sociológico e territorial) da abstenção eleitoral; desaparecimento, nesse contexto, da esquerda proveniente do movimento operário abaixo do limiar de credibilidade; erosão dos partidos do sistema; enrijecimento ideológico das direitas; escorregão neoliberal das forças social-democratas; emergência do movimento social/eleitoral anti-partidos tradicionais Movimento Cinco Estrelas – (M5S); multiplicação de movimentos sociais locais (contra projetos inúteis, por uma redefinição da democracia local, etc). [1]
Em uma obra não traduzida – Finale di partito [2] (Fim de Partido [3]) – o intelectual e cientista político italiano Marco Revelli se interroga a respeito destes fenômenos contemporâneos. Ele analisa, em particular, essa crise de confiança dos cidadãos nos partidos políticos.
Para ele, a forma partidária herdada da segunda revolução industrial casa harmoniosamente com a organização dos grandes sistemas de produção – as fábricas – “centralizados e burocratizados, mecanizados e padronizados, rígidos e rigorosamente territorializados, pensados pela programação e planejamento de um longo período”. Tratava-se então de operar na conscientização e na integração políticas de novas massas de trabalhadores recentemente passados do estado de multidões camponesas, linguísticas e culturais ao estado de classe operária. Essa tarefa necessitava, no contexto de emergência do capitalismo industrial, de uma referência de organização vertical, adaptada às estruturas econômicas e sociais e baseada no princípio de delegação e de representação. Tratava-se de organizar a luta no seio das unidades de produção que engendravam as relações de produção territorializadas. Assim, “o partido de massa era (..) o microcosmo no qual se refletia o microcosmo social paralelo (…). Ele era destinado a refletir, no espaço parlamentar, o jogo conflituoso (e de negociação) entre os grupos sociais unidos” e a oligarquia. Neste contexto, o “representante” beneficiava da confiança do “representado”, com quem ele partilhava a proximidade territorial e, por vezes, o espaço de trabalho. Assim, a “máquina política” respondia à máquina capitalista.
O partido inspirava-se igualmente, por sua organização, no modelo de Estado e de administração que ele ambicionava conquistar.
O fim do modelo fordista de produção, a internacionalização e a segmentação de cadeias produtivas, o “livre” comércio, a financeirização da economia capitalista, a emergência da economia desmaterializada e de serviços foram, segundo o autor, o início de uma desestruturação progressiva e irreversível dos modos de organização do trabalho e de modelos de classes.
A erosão da homogeneidade sociológica e da classe de trabalhadores e o aumento do nível educacional tinham gerado a aparição da “política líquida” [4], espelho e produto da diversificação de fluxos econômicos e sociais na esfera política. Nós assistimos assim à uma “liquefação do corpo eleitoral” vindo da fragmentação de “pertencimentos sociais estáveis”. Para Marco Revelli, “o partido político ‘clássico’ (…) era a forma mais adaptada para responder à uma demanda social tipicamente “materializada” (…) de eleitores mecanicamente agregados em grupos relativamente homogêneos de populações largamente definidas por seus papéis produtivos respectivos e caracterizados por um nível médio ou baixo de escolaridade. Tratava-se da forma própria de representação na modernidade industrial”.
Agora, a família de trabalhadores é múltipla e as novas gerações vindas dos anos 1970, 1980 e 1990 têm características sociopolíticas diferentes. Não são mais os trabalhadores manuais orientados pelas grandes organizações sindicais e políticas que pesam na dinâmica das relações sociais, mas os estudantes, os técnicos, trabalhadores intelectuais mobilizados na economia dos serviços (setor terciário), o telemarketing, etc. Esses formam os novos batalhões de classes média-baixas urbanas e precárias que têm acesso aos ganhos públicos e ao emprego, mas de maneira intermitente.

GERAÇÃO 70 - POESIA/CRÍTICA

".......... Noutras poesias,  como em "Frêgues Constante", discurso dispares e próximos se entrecruzam. Perplexidades advém da fala de seivoso erotismo que brinca na "Torta magnificamente  coberta de fios de ovos", nos " anéis, brincos e gin, vinho, vodka/sucos, refrescos e refrigerantes". à mesa, na prazerosa ronda a mortífera ameaça que se desloca para cena do texto, que contracena com o Pax de deux" do segundo ato de Gisele com que o poema, vital e ameaçador, termina.
As criações de Vicente de Percia encaminham-se para mistérios que choram momentos tensionais em que Eros e Thanatos se dilaceram unidos.
Assim,o então poeta e crítico de arte Vicente de Percia vivencia o sabor da sua arte e fazendo, o travo crítico da críse que a estética presente visa superar. "
Dalma Bralne Portugal do Nascimento
Professora- Doutora titular de da UFRJ Literatura brasileira, portuguesa, Teoria literária, Evolução da literatura.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

CRISE DE IDENTIDADE.

O indivíduo está cada vez está mais imerso na crise de  identidade, facilmente detectada em um processo confuso e plural de chamamento que o deixa disperso e o torna frágil mediante  os seus objetivos. Há um amplo deslocamento e  perda de  metas  a serem traçadas  pelo indivíduo "moderno". Por mais que se queira localizar as causas dessas inconstâncias e buscas que davam ao indivíduo uma certa sensação de continuidade em um mundo  centrado, as ações se perdem. O Homem e o mundo estão em crise. Passam a pertencer e a constituir  algo solto e dilacerado nas suas ideias e montagens.
 O final do século XX  agrega o descentramento e de certa forma se opõe às raízes do passado, ou as informações culturais abordadas na sua plenitude que, a seu modo, forneciam ao ser diálogos e direcionamentos sociais.
 A identidade não existe, está em crise e se torna um problema não resolvido e, assim, é vista e manipulada como algo "confortável" de entendimento pelo próprio indivíduo pós-moderno. Ele busca a todo custo, na sua pseudo- identidade explicar sem conseguir o seu descentramento - 
uma situação de sua própria localização social. Essa  postura é uma intenção de justificar  um novo segmento cultural para o indivíduo se fortalecer em uma forma de ancoragem em um universo sem diretrizes.
Vicente de Percia
Artes Visuais - Bow Art International

segunda-feira, 15 de julho de 2013

OS INTERMINÁVEIS CONCEITOS DE ARTE

Por Vicente de Percia
Os inúmeros conceitos da arte dariam para preencher ilimitadas enciclopédias. É comum vê-los em apresentações, catálogos, ensaios, palestras, citações de autores com seus pensamentos ávidos em situar a tarefa artística. Alguns opinam que a ideia é o elo de interseção na criação da obra, outros se posicionam que o perfil espontâneo ou plástico não é o meio certo de fazer a arte e por aí vai...
De quê modo se forma um artista atualmente? Como e qual é a sua trajetória para criar uma obra de arte? Uma série de conceitos surgem, entre eles: o fator histórico. Há artistas que vivenciaram profundas crises políticas sociais relevantes e se aproveitaram delas para criar. Os valores éticos e econômicos também são suportes e também são usados para legitimar a arte.
No início do séc.XX os diferentes meios materiais não convencionais foram utilizados para afirmar o surgimento de novas tendências e propiciar um distanciamento mais "realista" em relação ao seu tempo.
Estávamos diante da inovação atrelada ao deslanche das civilizações industriais, em franco crescimento tecnológico e o incentivo de possibilidades de ir de encontro ao combate do velho.
A experimentação nas artes plásticas não está tão distante da incessante busca da "modernidade" onde o novo produto a ser lançado deve propiciar benefícios em vários setores, cobrindo item inerente ao prazer do Homem e ao seu consumo.
Esse mesmo esquema é visto em múltiplas tarefas e setores artísticos tidos como as mais viscerais ou engajadas: a análise pode ser descrita para que o espectador possa ser direcionado e compreender o objetivo da obra do artista e alertar para os elementos e as formas presente na obra o que revelará a proposta do artista e desvendará o hermetismo da obra. .
Há segmentos críticos que valorizam essa complexidade acima citada, considerando o afastamento do olhar e a aproximação do texto ( esse se tornando mais importante,por vezes que a obra) um vínculo que procura  acenar para o expectador para que ele possa compreender ou pelo menos se aproximar do que está vendo. São na maioria conceitos filosóficos e como tal podem ser aceitos ou não.
Há posicionamentos que afirmam um estranhamento na arte em relação a sua integração com a sociedade. A arte dentro dessa reflexão estaria longe de poder interagir completamente com a sociedade, com o senso de observação espontâneo e coletivo. A definição de povo nos vários ciclos históricos; o trabalho envolto na produção; a divisão de classes; a vida política e social são sinalizações que a filosofia da arte estuda e, portanto meios para conhecê-la sem superficialidade.
Entre as correntes contemporâneas há os que afirmam que é impossível ser neutro na arte contemporânea. A trajetória da produção atual sem dúvida está ligada a "esquemas" mais preocupados com a demanda do que com o conteúdo. O capitalismo voraz põe suas garras sobre a legitimação da "obra de arte" e cada vez mais os seus conceitos não estão voltados para um embasamento que permita avaliar com coerência a situação real da criação artística. 
A reflexão da crítica de arte adota uma parcialidade, não é um defeito, pois desde a sua existência falar de arte é também falar do artista, do gosto pessoal, da época, etc.. Dessa forma não há como se obter uma exclusão total da crítica para se distanciar dos erros e legitimar ou não uma obra de arte.

sábado, 4 de maio de 2013

CRÍTICA DA ÓPERA AIDA DE VERDI - TEMPORADA 2013, THEATRO MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO

aida-600-ok-ok
Escrito por Marco Antônio Seta em 21 abr 2013 
Na atual produção iniciada a 20 de abril, a protagonista da ópera foi realmente a princesa Amneris e não a Aída como dita o libreto de Ghislanzoni.
Grande artistas da cena lírica internacional representaram Aida newste teatro. Elisabetta Barbato e Ebe Stignani em 1947/49; Renata Tebaldi e Elena Nicolai em 1951; Constantina Araújo e Mario Del Monaco em 1954; Antonieta Stella e Pier Miranda Ferraro em 1956 e Aprile Millo e Maria Luisa Nave em 1986. Complementaram esses artistas Giulio Neri, Beniamino Gigli, Fedora Barbieri, Mario Filippeschi, Enzo Mascherini, Boris Christoff, Maria Henriques, Gian Giacomo Guelfi, Marta Rose, Ida Miccolis,  Fernando Teixeira, Bruno Sebastian, Dimiter Petkow e Gianfranco Cecchéle. Regentes: Oliviero de Fabritis, Enzo Tieri, Antonino Votto, Franco Ghione, Ottávio Marini, Edoardo de Guarnieri, Santiago Guerra e Isaac Karabtchevsky atuaram como maestros concertattores e diretores de orquestra.
A orquestra sinfônica começou tímida num andamento extremamente ralentado, arrastando exageradamente, mas melhorou aos poucos no pulso de seu competente regente. A majestosa música composta por G. Verdi, o gigante da ópera italiana, especialmente nos dois primeiros atos, e sobretudo no que se refere à música instrumental, coral e também para ballet, nos concertatos do 2º quadro do ato II, foram aqui dignamente interpretados sob a batuta de Isaac Karabtchevsky.
Radamés, jovem capitão egípcio, apaixona-se por Aída, escrava etíope que serve a Amneris, filha do faraó. Não sabe que Aída tem sangue real e que Amneris está apaixonada por ele. Quando os etíopes avançam sobre o Egito, Radamés é nomeado comandante dos exércitos, para angústia de Aída, que retribui o seu amor. Vitorioso, Radamés traz entre os prisioneiros, Amonasro, rei da Etiópia e pai de Aída. Por amor a Aída, Radamés consegue do faraó clemência para os prisioneiros, o que leva ao paroxismo o ciúme de Amneris, consciente de que Aída é a sua rival. Um ardil de Amonasro faz com que Radamés revele a Aída segredos que permitirão um novo ataque dos etíopes. Descobertos por Amneris, Radamés é julgado e condenado à morte, enquanto Amneris mergulha em sentimentos contraditórios.
O texto do egiptólogo Eugène Mariette que sugeriu ao compositor a trama de “Aída” cujo libretista é Antonio Ghislanzoni, nos apresenta o triângulo amoroso contrapondo-se ao templo sagrado de Vulcano em Memphis, do qual a figura central é o sumo sacerdote Ramfis, interpretado por Sávio Sperândio, baixo (de Goiás), embora não da classe artística de Cesare Siepi, Giulio Neri, Giorgio Tozzi, Nino Meneghetti, Nicolai Ghiaurov, Samuel Ramey, Paata Burcholavsky entre outras celebridades. Baixo cantante atuante na cena lírica nacional, deu uma razoável interpretação iniciada com palidez, especialmente na cena do templo de Memphis “Nume custode vincide”, onde estático e inexpressivo não emocionou a plateia ainda que coadjuvado pelo coro e Radamés. Depois aqueceu-se com o andamento da ópera, acertando mais no IV ato.
Os sacerdotes (barítonos e baixos) do coro realizaram correta leitura da parte que lhes cabe (cena do julgamento); nível de excelência atingiram os sopranos e mezzos, particularmente nos conjuntos de todo o ato II.
Iacov Hillel apresentou-nos uma marcação cênica nada criativa, limitando-se ao convencional, inclusive no tocante às cena de massa bem como aos personagens principais. Esperávamos mais desse artista experiente já no teatro lírico brasileiro. Os cenários de Hélio Eichbauer se inspiram em formas geométricas, abundantes na arquitetura antiga egípcia aqui evocada numa concepção mais contemporânea; e as projeções sobre o cenário, algumas em 3-D, pela videasta Laís Rodrigues, é outro trunfo, embelezando a arte visual, concretizando assim um bonito conjunto cenográfico.
Aída, a escrava etíope exprime seus sentimentos na ária do Nilo com o coração angustiado à espera de Radamés: nessa ária Fiorenza Cedolins deveria demonstrar todas as suas qualidades vocais: extensão, controle técnico, agudos claros e bem emitidos (vai até o dó 5 natural). A cantora italiana, soprano lírico spinto de bonito timbre e de escola de canto irregular, cujo repertório deveria se limitar à Mimi de La Bohème, Micaela, Nedda de “Pagliacci”, ou outros similares, não conseguiu vencer as dificuldades desse imenso personagem verdiano. A voz não corresponde em volume para os concertatos do ato II, nos duetos com Amonasro e Radamés é bastante irregular nos andamentos e nas árias principais, onde precisa ser excelente, tenta ela compensar com pianíssimos, todavia falham ou não se emitem, o que ocorrera em sua ária de importância máxima, quando emudeceu o dó natural: “Oh! Patria mia, mai più ti rivedrò”. No dueto “O terra, addio” foi apenas regular; ajudada pelos seus companheiros de cena (Pelizzari e Smirnova). A sofrida “Aída” de F. Cedolins decepcionou o currículum que a precedeu.
Rubens Pelizzari também se distanciou do óbvio: a cena é primária em suas aparições no palco e a voz, de tenor spinto, sempre calante na afinação. Acostumado a cantar em pequenos teatros da Itália e países vizinhos, apavorou-se com a grandiosidade do nosso teatro do Rio de Janeiro e, também pelo seu próprio papel que havia de desencumbir-se; no ato III já apontava a exaustão em seus duetos com Aída e Amonasro; sua ária “Celeste Aída” limitou-se ao linear.
Amneris, a filha do rei do Egito, foi aqui interpretada pelo mezzo soprano russo Anna Smirnova, que em sua primeira aparição como a princesa no Rio de Janeiro, brilhou rotundamente. Na diversidade de seus sentimentos, mergulhou em contradições: o seu orgulho, o auge de ciúme, a satisfação da vingança e a dor descomunal de ter contribuído para a condenação de Radamés. Some-se a isso uma voz potente, enorme e aquecida desde sua primeira entrada na cena II do 1º ato. Após demonstrar a beleza e a força de seu timbre nos dois primeiros atos, exacerbou no IV ato, dominando por completo a cena do julgamento, precedida pelo dueto “Gia i sacerdoti adunansi” emancipando-se bravamente na frase final “Empira razza! Anatema su voi !” Foi imensamente ovacionada. Aos paulistanos e cariocas presentes no Municipal que viram esta  brava Amneris, certamente recordaram-se da insuperável interpretação de Marta Rose, cantora chilena de nível internacional que nos visitou em 1957 aqui no Rio, e após no Teatro Municipal de São Paulo em 1967, novamente em 1968 e 1970 pela última aparição no Brasil. Inesquecíveis essas Amneris.
Amonasro, o rei etíope cativo, pai de Aída, a cargo de Lício Bruno fica muito distante daqueles que pisaram neste célebre palco carioca. Rubens de Falcchi, Paolo Silveri, Enzo Mascherini, Lourival Braga, e o maior de todos eles: Gian Giacomo Guelfi. Sem falar de Fernando Teixeira, em 1986/1988,  esse glorioso barítono carioca, que projetou-se em teatros verdadeiramente importantes aí pelo mundo afora. Lembrar-se de GGGuelfi em sua entrada em cena: “Suo padre!…” no palco do Theatro Municipal de São Paulo (1970) é coisa de cinema ! Figuravam a seu lado:  Bruno Prevedi, Marta Rose, Rita Orlandi Malaspina e seu marido Maximiliano Malaspina com Mario Rinaudo (Ramfis). Nada a acrescentar nesta produção carioca.
O Faraó de Carlos Eduardo Bastos Marcos (baixo cantante, mas requer-se um baixo profundo), limitou-se ao satisfatório num conjunto heterogêneo; o mensageiro deRicardo Tuttmann é bastante expressivo e muito musical e a sacerdotiza deBianchini, muito fraca,  considerando-se que sua voz revelou-se branca demais para a tão linda invocação à Isis. Bailados colaboraram com eficiência sobretudo na dança das sacerdotisas e da cena triunfal com um homogêneo conjunto coreográfico. ParabénsJoão Wlamir, e Cia. Jovem de Ballet do Rio de Janeiro.

sexta-feira, 29 de março de 2013

CULTURA DIGITAL, JANELA PARA A PÓS - MASSIFICAÇÃO



Pela primeira vez na história, é possível superar indivíduo e homem-massa, construindo o comum. Seria trágico desperdiçar tal oportunidade
Por Jéferson Assumção* | Imagem: Bansky
MAIS:
Este texto é o posfácio de Homem-massa: a filosofia de Ortega y Gasset e sua crítica à cultura massificada”, livro de Jéferson Assumção.
– 

Em 2020, o mundo deverá ter mais de 24 bilhões de dispositivos conectados em rede, como apontam pesquisas da empresa Machina Research, especializada no tema. Com isso, haverá uma média de três aparelhos conectados por pessoa, incluindo celulares, eletrodomésticos, tablets e até computadores. Eles poderão ser utilizados heteronomamente. Ou de modo um pouco mais autônomo. Se de maneira heterônoma, continuarão gerando massificação, mesmo que venha a ser um tipo customizado de massificação. Se de forma mais autônoma, poderemos ver a emergência de indivíduos-redes desmassificados?
Certamente que os atuais avanços da era digital podem, se bem aproveitados, gerar um ambiente menos favorável à homogeneização cultural e à vigência do comportamento do que Ortega chamou de homem-massa – este produto da técnica da era industrial que se desenvolveu na virada do século XIX para o século XX. Agora, em pleno século XXI, mais uma vez o desenvolvimento técnico vem trazer questões importantes para se pensar sobre como o ser humano se comporta em relação à tecnologia que ele mesmo desenvolve.
Diferentemente do homem-massa delineado por Ortega na década de 30 do século XX, os seres humanos atuais, do ponto de vista tecnológico, têm abundantes condições de viver numa multidimensionalidade da cultura. Há mais acesso à diversidade cultural e às condições de se fazer as recombinações de elementos, processos e visões de mundo, muito mais do que em qualquer outro momento da humanidade. Portanto, em se tratando de cultura, essa palavra cujo sentido em muito tem a ver com modos de fazer, de técnicas e interação de indivíduos entre si e destes com a natureza, uma cultura ligada ao ambiente digital não pode ser desconsiderada numa leitura mais plena de nosso tempo.
A cultura digital e seus rebatimentos estéticos (diversidade cultural e recombinações), éticos (ética do compartilhamento) e políticos (ação cidadã em rede, descentralizada e com menos mediação de estruturas verticais) são, em termos mais amplos, um importante tema de nuestro tiempo. Não se trata mais da perda da aura da arte na época de sua reprodutibilidade técnica – como assinalava Walter Benjamin – mas, devido à desmaterialização dos suportes ocorrida nas últimas décadas, trata-se da perda da aura da obra de arte na época de sua infinita reprodutibilidade técnica. Há mais condições de heterogeneidade, diversidade, inter e transculturalidade, portanto mais condições (e responsabilidades) dos sujeitos contemporâneos fazerem a si próprios.
Foram décadas de unidimensionalidade (O homem unidimensional, de Herbert Marcuse). Nelas, a sociedade industrial impunha quase que uma única dimensão da vida: uma racionalidade “tecnológica” (físico-matemática, para Ortega) de mão única. Ela dominava e oprimia por meio de aparatos de controle das consciências humanas, meios de entretenimento e comunicação de massa que hiperdimensionavam em todos a pulsão de vida (sexo, jogos, entretenimento) e a pulsão de morte (violência urbana e sensação de insegurança extrema). O resultado eram homens e mulheres autômatos, incapazes de se opor ao sistema, pois vivendo a mecânica do conformismo, dentro das benesses do conforto.
Agora, com as novas condições, não há também mais desculpas: o homem-massa, paciente e agente de sua condição de massa, invertebrado habitante do ambiente técnico-consumista do século XX, dominado pelo mercado, por partidos, sindicatos e estados ortopédicos, de cima para baixo, não tem mais a quem jogar a responsabilidade. Ele pode recuperar sua autenticidade, como em nenhum outro momento da Humanidade. A técnica do século XIX engendrava o homem-massa, dizia Ortega. A técnica do século XXI pode engendrar o pós-homem-massa. Se para os frankfurtianos e para a teoria crítica, o comportamento heterônomo era inculcado pela indústria cultural nas cabeças das pessoas, hoje este elemento se fragmenta. Desaparecem dia a dia os mediadores e as indústrias de fabricação de suportes materiais da arte e, de todo lado, movimentos de indivíduos em rede trazem as visões da periferia para o centro do debate sobre cultura. Com tudo isso, é possível dizer que estão dadas as condições técnicas para a superação tanto do homem massificado quanto do homem atomizado, fechado em si, solipsista, consumista individualizado e não participante de sua circunstância?
II.
Pós-homens-massa Aqui e ali já se notam as estratégias das empresas na internet para gerar comportamentos massivos através de ambientes pós-massivos. São espécies de homens- massa customizados, a parecerem indivíduos autônomos, mas no fundo não só seguem como aprofundam os padrões de consumo da era industrial. Um perigo é que, com as novas tecnologias de produção pós-industriais, a produção capitalista atual sabe que não precisa mais fazer nada em série, nem seres humanos em série. Hoje, trabalhando com a tática de criar – eles dizem “descobrir” – nichos de mercado, ela amplia seu poder ao fazer homens-massa customizados, com aparência de autônomos. As roupas e os cabelos parecem diferentes entre si, mas este tipo de homem-massa customizado segue o mesmo por dentro: inautêntico e diminuído ao elemento fundamental do consumidor, em vez de responsável por fazer sua própria vida. Mesmo no ambiente pós-massivo, este tipo massificado pelo mercado continua massa, pois segue sendo educado pelo mercado e pelos usos da sociedade desvitalizada pelo pragmatismo utilitarista, materialista e agora pela internet para se comportar como massa, invertebrada e vaga.
Em sentido contrário, nunca se teve tantas condições de se hackear, fazer truques, implantes, rachas no sistema. A articulação da cultura colaborativa digital com a economia solidária tem revelado um potencial gigantesco de revitalização cultural, em todo o mundo onde ela se desenvolve. Uma das razões é que ela é capaz de “destampar” culturas populares rurais, urbanas, suburbanas, antes invisibilizadas, por sua capacidade de descentralizar e multidirecionar os fluxos de informação e de recursos, antes unidirecionalmente ativados desde um centro industrial para o consumo de massas.