sábado, 28 de setembro de 2013

A QUESTÃO DA ARTE CONTEMPORANEA

FERREIRA GULLAR
Porque a vida não basta
A arte contemporânea acabou com a crítica; isso é expressão da crise por que passam as artes plásticas
Embora tenha frequentemente criticado o que se chama de arte contemporânea, devo deixar claro que não pretendo negá-la como fato cultural. Seria, sem dúvida, infundado vê-la como fruto da irresponsabilidade de alguns pseudoartistas, que visam apenas chocar o público.
Há isso também, é claro. Mas não justificaria reduzir a tais exemplos um fenômeno que já se estende por muitas décadas e encontra seguidores em quase todos os países.
Por isso, se com frequência escrevo sobre esse fenômeno cultural, faço-o porque estou sempre refletindo sobre ele. Devo admitir que ninguém me convenceria de que pôr urubus numa gaiola é fazer arte, não obstante, me pergunto por que alguém se dá ao trabalho de pensar e realizar semelhante coisa e, mais ainda, por que há instituições que a acolhem e consequentemente a avalizam.
O fato de negar o caráter estético de tais expressões obriga-me, por isso mesmo, a tentar explicar o fenômeno, a meu ver tão contrário a tudo o que, até bem pouco, era considerado obra de arte. Não resta dúvida de que alguma razão há para que esse tipo de manifestação antiarte (como a designava Marcel Duchamp, seu criador) se mantenha durante tantos anos.
Não vou aqui repetir as explicações que tenho dado a tais manifestações, as quais, em última análise, negam essencialmente o que se entende por arte. Devo admitir, porém, que a sobrevivência de tal tendência, durante tanto tempo, indica que alguma razão existe para que isso aconteça, e deve ser buscada, creio eu, em certas características da sociedade midiática de hoje. O fato de instituições de grande prestígio, como museus de arte e mostras internacionais de arte, acolherem tais manifestações é mais uma razão para que discutamos o assunto.
Uma observação que me ocorre com frequência, quando reflito sobre isso, é o fato de que obra de arte, ao longo de 20 mil anos, sempre foi produto do fazer humano, o resultado de uma aventura em que o acaso se torna necessidade graças à criatividade do artista e seu domínio sobre a linguagem da arte.
Das paredes das cavernas, no Paleolítico, aos afrescos dos conventos e igrejas medievais, às primeiras pinturas a óleo na Renascença e, atravessando cinco séculos, até a implosão cubista, no começo do século 20, todas as obras realizadas pelos artistas o foram graças à elaboração, invenção e reinvenção de uma linguagem que ganhou o apelido de pintura.
Isso não significa que toda beleza é produto do trabalho humano. Eu, por exemplo, tenho na minha estante uma pedra --um seixo rolado-- que achei numa praia de Lima, no Peru, em 1973, que é linda, mas não foi feita por nenhum artista. É linda, mas não é obra de arte, já que obra de arte é produto do trabalho humano.
Pense então: se esse seixo rolado, belo como é, não pode ser considerado obra de arte, imagine um casal de urubus postos numa gaiola, que de belo não tem nada nem mantém qualquer relação com o que, ao longo de milênios, é tido como arte. Não se trata, portanto, de que a coisa tenha ou não tenha qualidades estéticas --pois o seixo as tem-- e, sim, que arte é um produto do trabalho e da criatividade humana. Se é boa arte ou não, cabe à crítica avaliar.
E toca-se aqui em outro problema surgido com essa nova atitude em face da arte. É que, assim como o que não é fruto do trabalho humano não é arte, também não é possível exercer-se a crítica de arte acerca de uma coisa que ninguém fez.
O que pode o crítico dizer a respeito dos urubus mandados à Bienal de São Paulo? A respeito de um quadro, poderia ele dizer que está bem mal-executado, que a composição é pobre ou as cores inexpressivas, mas a respeito dos urubus, que diria ele? Que não seriam suficientemente negros ou que melhor seria três em vez de dois? Não o diria, pois nada disso teria cabimento. Não diria isso nem diria nada, porque não é possível exercer a crítica de arte sobre o que ninguém fez.
Desse modo --e inevitavelmente--, a chamada arte contemporânea acabou também com a crítica de arte. Isso tudo é, sem dúvida, a expressão da crise grave por que passam hoje as artes plásticas.
Costumo dizer que a arte existe porque a vida não basta. Negar a arte é como dizer que a vida se basta, não precisa de arte. Uma pobreza!

terça-feira, 24 de setembro de 2013

CRÍTICO DE ARTE VICENTE DE PERCIA NA SUA POSSE COMO PRESIDENTE DO CEAQ-BRASIL

Um dos momentos da gestão do escritor e crítico de artes plásticas no " Centre d'Etude Sur l' Actual et le Quotidien"(CEAQ-BRASIL) quando proferiu sua palestra acerca da globalização na arte e o papel da mídia. (parte do seu texto)

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Se a mídia funciona como instrumento de estimulação e de legitimação hedonistas, contribui, paralelamente, para destilar uma situação de insegurança, amplificando os temores cotidianos: medo alimentar, medo de vírus, da pedofilia, da obesidade, da violência urbana, da poluição. Quando liberado da sujeição ao coletivo, o indivíduo acha-se cada vez mais submetido aos poderes do medo e da inquietude:
Pelo sensacionalismo, a mídia constitui uma extraordinária caixa de ressonância dos perigos que planam sobre nossas existências. Por um lado, a mídia mergulha no lúdico e nas distrações superficiais; por outro lado, não pára de intensificar as imagens de um mundo repleto de catástrofes e de perigos. (LIPOVETSKY, 2004: 76-77).
As grandes mobilizações de caráter emocional só podem ser compreendidas se vinculadas ao triunfo dos valores hedonistas, lúdicos e psicológicos amplamente veiculados pelos sistemas de comunicação (LIPOVETSKY, 2004). Para estes, a espontaneidade dos afetos, a vida no presente e a liberdade nos engajamentos adquiriram uma legitimidade de massa.

Um "manual" de instruções para as escolhas

O indivíduo moderno precisa de boas razões para seguir seu Deus e suas crenças, afirma Chagas. No entanto, além dos diferentes deuses e crenças religiosas de que dispomos, hoje, como medidas paliativas para nosso mal-estar, temos inúmeras outras ofertas de orientação para a vida. Elas determinam o que devemos fazer para evitar medos, incertezas e insuficiências. "Elas oferecem, além de outras coisas, a quem procura o auto-conhecimento, a receita da felicidade plena, 'aqui e agora', 'na Terra'." (CHAGAS, 2001:25).
Em relação à reflexividade constituinte da sociedade moderna, consideremos, como explica Giddens (2002), que o indivíduo vive uma biografia reflexivamente organizada em termos do fluxo de informações sociais e psicológicas sobre os possíveis modos de vida. A modernidade representa uma ordem pós-tradicional que suscita constantes decisões sobre o comportamento, representadas por questões referentes ao que vestir ou ao que comer, por exemplo. Essas decisões fazem referência à auto-identidade. Giddens alerta para a consciência relativa que a identidade do eu pressupõe: é aquilo de que o indivíduo está consciente no termo "autoconsciência". A auto-identidade é algo que deve ser criado e sustentado rotineiramente nas atividades reflexivas do indivíduo.
No nível do eu, a escolha funciona como um componente fundamental da atividade cotidiana. Giddens aponta para o fato de que todas as tradições são efetivamente escolhas entre uma gama indeterminada de padrões possíveis de comportamento, mas que, por definição, a tradição, ou os hábitos estabelecidos, ordena a vida dentro de canais relativamente fixos. O indivíduo deve fazer escolhas referentes a seu estilo de vida , é obrigado a fazê-lo. Cada uma das decisões que uma pessoa toma diariamente contribui para as rotinas que determinam estilos de vida. Todas as escolhas são decisões não só sobre como agir, mas também sobre quem ser.
Padrões gerais de estilo de vida são menos diversos que a pluralidade de escolhas disponíveis nas decisões diárias e mesmo nas decisões estratégicas de prazo mais longo (GIDDENS, 2002). Um estilo de vida envolve um conjunto de hábitos e orientações, tendo determinada unidade que liga as opções em um padrão mais ou menos ordenado. Estando comprometido com determinado estilo de vida, o indivíduo necessariamente avalia várias opções como inadequadas a ele, da mesma forma que julga os outros com quem interage. Além disso, a seleção ou criação de estilos de vida é influenciada por pressões de grupos e completadopela visibilidade de modelos, assim como pelas circunstâncias socioeconômicas. Como envelhecer melhor, dormir melhor, relaxar e comer melhor são questões apontadas por Lipovetsky como solucionáveis pelos mais variados livros que funcionam como guias para um indivíduo que quer soluções eficazes e técnicas para os diversos problemas e questões da vida.
Como descreve Chagas, o sujeito moderno tem o desejo de ser o único e o melhor de todos. Essa é uma crítica que, de certa forma, acompanha o raciocínio de Bauman e Giddens. Ora, se cada indivíduo tem a ambição de ser o melhor e se o discurso de auto-ajuda alimenta essa ilusão, inevitavelmente verificamos a ineficácia dessa promessa, já que, obviamente, nem todos podem ocupar posições vantajosas, pelo menos não a todo o mundo e em qualquer âmbito.
O surgimento de novos estilos de vida afeta a produção, o trabalho e o cotidiano de cada indivíduo. Os valores se transformam e tornam obsoleto para hoje aquilo que valia ontem, da mesma forma que o futuro próximo pode desmerecer aquilo que valorizamos agora.