terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

CARNAVAL


Celebrar corpo, consciência e prazer pode ser alternativa à cultura que reduz sexo a fetiche de egos e poderes
Por Katia Marko, editora da coluna Outro Viver | Imagem: Paco Antonino
Chegou o Carnaval. Momento tão esperado por muitos. Espaço para soltar o freio, viver fantasias, desfrutar o prazer. Pacatos cidadãos experimentam o sonho de virar reis e rainhas. Desejos inconscientes escapam pela janela agora aberta com o consentimento social. Tudo vale na busca do prazer.
O meu Carnaval, há alguns anos, tem sido na Comunidade Osho Rachana, onde promovemos um grupo chamado Carnawow. Já está confirmada a participação de 70 pessoas para este ano. Serão quatro dias de trabalho corporal, meditações, trilhas na natureza, encontros, diversão e criatividade. Tudo para aumentar a capacidade de curtir a vida. Pra começar, vamos “limpar o terreno”. Sessões de bioenergética e meditações pra ajudar a soltar tensões e sentimentos guardados e reconectar com a energia do corpo. No domingo, depois de reconectar consigo mesmo, é a vez de encontrar o outro, no sentido mais rico da palavra. Trabalhos terapêuticos que vão ajudar a recuperar a confiança na amizade. Já na segunda-feira, é o espaço para a celebração e o êxtase. O grupo é dividido para criar e apresentar duas escolas de samba com direito a alas, bateria, carros alegóricos e o que mais a imaginação permitir.  No último dia, é relaxar, curtir a natureza e meditar.
Mesmo que todos nós busquemos o prazer, esta é uma palavra que evoca sentimentos conflitantes. Por um lado esta associada com o que é “bom”. Mas, a maioria das pessoas acharia desperdício uma vida devotada ao prazer. Temos medo que o prazer nos leve a caminhos perigosos, onde esqueceríamos deveres e obrigações, deixando que nosso espírito se corrompesse pelo prazer descontrolado.
No livro Prazer, uma abordagem criativa da vida, o médico-psiquiatra Alexander Lowen, explica que todos nós queremos que a vida seja mais do que a luta pela sobrevivência, e deveria ser agradável, e sabemos que todos têm amor a dar. “Mas quando o amor e a alegria desaparecem, sonhamos com a felicidade e procuramos a diversão. Não conseguimos perceber que o alicerce de uma vida alegre é o prazer que sentimos em nossos corpos, e que sem essa vitalidade, ela se transforma na cruel necessidade de sobrevivência, onde a ameaça de tragédia nunca está ausente”.
Na real, em nossa cultura, todos receiam o prazer. “Como a cultura moderna é dirigida mais pelo ego do que pelo corpo, o poder se transformou no principal valor, reduzindo o prazer a uma situação secundária. A situação do homem moderno se assemelha à de Fausto que vendeu a alma a Mefistófeles em troca de uma promessa que nunca poderá ser cumprida. Apesar da promessa de prazer ser uma tentação do diabo, o prazer não pode ser proporcionado pelo diabo”, diz Lowen.
Segundo ele, todos nós, como o Dr. Fausto, estamos prontos a aceitar as tentações do demônio. Ele está dentro de cada um sob a forma de um ego que nos acena com a realização de um desejo desde que o obedeçamos. A personalidade dominada pelo ego é uma perversão diabólica da verdadeira natureza humana. O ego não existe para ser mestre do corpo, mas sim seu servo leal e obediente. “O corpo, ao contrário do ego, deseja prazer e não poder. O prazer é a origem de todos os bons pensamentos e sentimentos. Quem não tem prazer corporal se torna rancoroso, frustrado e cheio de ódio.
O pensamento é distorcido e o potencial criativo se perde. A perda se torna autodestrutiva. O prazer é a força criativa da vida. A única força capaz de se opor à destrutividade em potencial do poder”.
Para Lowen, o prazer e a criatividade estão relacionados dialeticamente. Sem prazer, não haverá criatividade. Sem uma atitude criativa diante da vida não haverá prazer. “Essa dialética surge do fato de ambos serem aspectos positivos da vida. A pessoa viva é sensível e criativa. Através da sensibilidade coloca-se em harmonia com o prazer e através do impulso criativo procura sua realização. O prazer na vida encoraja a criatividade e a comunicação, e a criatividade aumenta o prazer e a alegria de viver”.
Então, para vivermos plenamente o prazer e a criatividade temos que mexer nas tensões do nosso corpo, respirar profundamente e expressar nossas emoções. Essa é a proposta do Carnaval na comunidade em que moro: prazer com consciência.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

ENFOQUE


Em trecho inédito de seu livro mais recente, Noam Chomsky afirma: nada indica que declínio norte-americano prejudique a democracia
Entrevista a David Barsamian, no Tom Dispatch* | Tradução: Gabriela Leite
Os Estados Unidos ainda têm o mesmo nível de controle sobre os recursosenergéticos do Oriente Médio que já tiveram?
Os países que são maiores produtores de combustíveis ainda estão firmemente sob controle das ditaduras apoiadas pelo Ocidente. O progresso obtido pela Primavera Árabe é limitado, mas não insignificante. O sistema de ditaduras controladas pelo Ocidente está ruindo. Na verdade, vem ruindo há algum tempo. Diferente do que ocorria há cinquenta, os recursos energéticos — a maior preocupação dos planejadores norte-americanos — foram, em sua maioria, estatizados. Há tentativas constantes de reverter isso, mas não tiveram sucesso.
Vamos examinar a invasão do Iraque, por exemplo. Para todos, exceto os ideólogos ferrenhos, era muito óbvio que invadimos o Iraque não por causa do nosso amor à democracia, mas porque o país era provavelmente a segunda ou terceira maior fonte de petróleo no mundo, e fica bem no meio da região de maior produção de energia. Mas não se deve dizer isso. É considerado teoria da conspiração.
Os Estados Unidos foram seriamente derrotados pelo nacionalismo iraquiano — principalmente por resistência não-violenta. Podia-se matar os insurgentes, mas se conseguia lidar com meio milhão de pessoas fazendo manifestações nas ruas. Passo a passo, o Iraque conseguiu desmantelar o controle estabelecido pelas forças ocupantes. Em novembro de 2007, já estava se tornando muito claro que Washington teria muita dificuldade para atingir suas metas. O interessante é que, naquele momento, elas estavam explicitamente estabelecidas.
Em novembro de 2007, o segundo governo de Bush emitiu declaração oficial sobre que arranjo futuro que o Iraque iria ter. Havia dois requisitos principais: primeiro, os Estados Unidos deveriam estar livres para desencadear operações de combate a partir de suas bases militares, as quais seriam preservadas. A segunda meta era “encorajar o fluxo de investimentos estrangeiros ao Iraque, especialmente os norte-americanos.” Em janeiro de 2008, Bush deixou isso claro em uma de suas notas oficiais. Dois meses depois, ao enfrentar a resistência iraquiana, os Estados Unidos tiveram que desistir destes objetivos. O controle sobre o Iraque estava desaparecendo diante de seus olhos.
O Iraque foi uma tentativa de reinstituir à força algo do velho sistema de controle, mas ela foi derrotada. Em geral, acredito, as políticas estadunidenses continuam tentando constantemente voltar à Segunda Guerra Mundial. Mas a capacidade de implementá-las está declinando.
Declinando devido à fraqueza econômica?
Em parte, porque o mundo está simplemente tornando-se mais diverso. Ele tem centros de poder mais diversos. No fim da Segunda Guerra, os Estados Unidos estavam absolutamente no topo de seu poder. Tinham metade da riqueza mundial e todos os seus competidores haviam sido destruídos ou seriamente atingidos. Washington tinha uma posição de segurança inimáginavel, e desenvolveu planos para, essencialmente comandar, o mundo. Não era algo irrealista, àquela época.
Isso era chamado de o planejamento da “Grande Área”?
Sim. Logo após a Segunda Guerra Mundial, George Kennan, chefe do pessoal de planejamento político do Departamento do Estado dos EUA, e outros, rascunharam os detalhes, que foram então implementados. O que está acontecendo agora no Oriente Médio, no norte da África e na América do Sul substancialmente retoma o que acontecia no fim dos anos 1940. A primeira grande resistência à hegemonia dos EUA deu-se em 1949. Foi quando se deu algo que é chamado curiosamente de “a perda da China.” É uma frase muito interessante, nunca renegada. Houve muita discussão sobre quem foi responsável pela perda da China, virou um grande assunto doméstico. Mas é uma expressão muito interessante. Você só pode perder alguma coisa se ela já lhe pertenceu. Toma-se por garantido que nós possuímos a China. Portanto, se eles alcançassem a independência, nós teríamos perdido a China. Mais tarde vieram as preocupações sobre “a perda da América Latina”, “a perda do Oriente Médio”, “a perda de” alguns países. Tudo baseado na premissa de que nós possuímos o mundo e qualquer coisa que enfraqueça nosso controle é uma perda para nós, que deve ser recuperada.
Hoje, se você ler, digamos, revistas de política externa, ou acompanhar os debates do Partido Republicano, verá que estão dizendo “Como vamos prevenir perdas futuras?”
Por outro lado, a capacidade de preservar o controle declinou nitidamente. Em 1970, o mundo já era o que é chamado de economicamente tripolar, com um centro industrial estadunidense; um europeu, com núcleo na Alemanha e aproximadamente comparável, em tamanho; e um do leste asiático, baseado no Japão, que era então a região de maior crescimento no mundo. Desde então, a ordem econômica global tornou-se muito mais diversa. Por isso, é difícil manter nossas políticas, mas os princípios subjacentes não mudaram muito.
Tome, por exemplo, a doutrina Clinton. Ela significava que os Estados Unidos têm o direito de recorrer à força unilateral para assegurar “livre-acesso aos mercados-chave, fontes de energia e recursos estratégicos.” A frase vai além de qualquer coisa que George W. Bush disse, mas o presidente não a alardeou, nem era arrogante e áspero. Por isso, não houve tumulto. A crença nesse direito continua até o presente. Também é parte da cultura intelectual.
Logo após o assassinato de Osama Bin Laden, entre todas as comemorações e aplausos, houve alguns comentários de crítica questionando a legalidade do ato. Séculos atrás, costumava haver uma coisa chamada presunção de inocência. Se você apreende um suspeito, ele é apenas suspeito, até que se prove culpado. Ele deve ser levado a julgamento. É uma parte essencial da lei norte-americana e tem origens na Carta Magna. Por isso, algumas vozes isoladas disseram que talvez não devêssemos jogar pela janela toda a base da justiça anglo-americana. Isso provocou muitas reações de desconforto ou furiosas, mas as mais interessantes partiram, como sempre, dos liberais de esquerda.
Matthew Yglesias, um comentarista conhecido e muito respeitado, escreveu um artigo no qual ridiculariza essas visões. Ele disse que são “surpreendentemente ingênuas”, tolas. É como se expressasse a razão. Disse que “uma das principais funções da ordem institucional internacional é precisamente legitimar o uso de força militar mortal por potências ocidentais.” Obviamente, não estava referindo-se à Noruega… mas aos Estados Unidos. Ou seja, o princípio no qual o sistema internacional está baseado é de que Washington tem o direito de usar a força à sua vontade. Falar sobre a violação da lei internacional, ou algo do tipo, pelos EUA, é “surpreendentemente ingênuo”, completamente bobo. Por acaso, eu fui o alvo dessas observações, e eu estou feliz por confessar minha culpa. Eu acredito, sim, que a Carta Magna e a lei internacional valem alguma atenção.
Menciono o fato apenas para ilustrar que o núcleo da cultura intelectual, mesmo entre a esquerda liberal, não mudou muito. Mas a capacidade de implementá-lo está nitidamente reduzida. É por isso que existe todo esse papo sobre o declínio dos Estados Unidos. Dê uma olhada na edição de fim de ano do Foreign Affairs, o principal jornal do establishment. Sua capa perguntava, em negrito: “É o fim da América?” É uma preocupação-padrão daqueles que acreditam que deveriam ter tudo. Se você acredita que precisa ter tudo, e que tudo que sai do seu controle é uma tragédia, então o mundo está entrando em colapso. É o fim dos Estados Unidos? Há um tempo, nós “perdemos” a China, perdemos o sudeste da Ásia, perdemos a América do Sul. Talvez, venhamos a perder também o Oriente Médio e os países do norte da África. É o fim da América? É um tipo de paranoia, mas é a paranoia dos super-ricos e dos superpoderosos. Para eles, não ter tudo é um desastre.
New York Times descreve o “dilema definidor da política da Primavera Árabe: como enquadrar impulsos norte-americanos contraditórios, que incluem o apoio à mudança democrática, o desejo de estabilidade e a cautela diante dos islamitas, que se tornaram uma força política potente.” O Times identifica três objetivos dos EUA. O que fazer com eles?