segunda-feira, 23 de julho de 2012

ZUMBI DOS PALMARES EM YEVORAH



Por Ivan Alves Filho
Costumo apreciar mais as regiões do que os países propriamente. Não sei de onde vem esse sentimento. Mas costumo. E diria ainda que, acima de tudo, gosto de aproximar regiões. Unir o que a geografia às vezes desuniu. Mais que a História, a arquitetura, a culinária, as artes uniram as pessoas. Por exemplo: Toscana, Alentejo e Campo das Vertentes. Três áreas que conheço relativamente bem e que são para mim como que geminadas. Regiões tão distantes uma das outras e ao mesmo tempo tão próximas! Pois a Toscana, o Alentejo e o Campo das Vertentes têm em comum a hospitalidade de seus habitantes, a delicadeza de seus montes e vales e a singeleza da arquitetura de suas cidades e vilarejos. Caso estou na Toscana, penso no Alentejo. Se me encontro no Campo das Vertentes, sonho com a Toscana. E se porventura eu me acho no Alentejo, logo me perco no Campo das Vertentes. Vá entender!
Essas aproximações ocorrem de maneira quase automática. Curiosamente, as três regiões são profundamente católicas. E o catolicismo, como sabemos, moldou como poucas religiões na História o perfil cultural de determinadas áreas. As igrejas rurais da Toscana, do Alentejo ou do Campo das Vertentes são o que existe de mais encantador em matéria de arquitetura da fé — se é que eu posso definir assim as igrejas. Curiosamente ainda, essas três regiões se apresentam como redutos quase inexpugnáveis das tradições populares — e talvez por serem tão belos e artísticos os homens até relutem em transfomá-los ou o fazem senão com muita lentidão. Normal. Quem não se apega à beleza, não é verdade? E o que dizer ainda da cozinha dessas regiões? O melhor é comer: tutu à mineira, sopa alentejana ou arrosto misto, o difícil mesmo é escolher.
Finalmente — e aqui vai mais uma curiosidade —, Toscana, Alentejo e Campo das Vertentes materializam três nacionalidades distintas. Na Toscana de Dante Alighieri nasceu a língua italiana — l´idioma gentile, fator fundamental na formação da futura identidade italiana. No Alentejo, Portugal se fez latino e árabe também, já que a região integrava a antiga Andaluzia muçulmana. Dir-se-ia que o Alentejo é uma espécie de ponto de interseção entre Ocidente e Oriente, com suas igrejas católicas redondas, caiadas de branco, à maneira de mesquitas. E um sol fervente: “Alentejo não tem sombra / senão a que vem do céu...”, diz a poesia do povo. E no Campo das Vertentes, bem, no Campo das Vertentes o Brasil sonhou com sua Independência, com Tiradentes à frente. A liberdade, ainda que tardia, começou a se esboçar ali, em meio àquelas paisagens graníticas da Serra São José e do Pico do Itacolomi.
Regiões também são nações. E as cidades também o podem ser. Évora, por exemplo, a capital do Alentejo, é uma síntese cultural complexa — e um verdadeiro presépio. Muito alva e limpa, Évora é uma cidade silenciosa, harmoniosa e, sobretudo, preservadíssima. Tanto que foi declarada, há alguns anos, Patrimônio Cultural da Humanidade. Uma construção com cerca de dois mil anos, o Templo de Diana é a principal atração da cidade, que possui ainda uma bela praça de corte renascentista, a Praça do Giraldo, tradicional ponto de encontro dos moradores e muito apreciada pelos visitantes. Em Évora todas as crianças estão na escola e não há idosos pedindo esmolas pelas ruas. Uma cidade humana, ternamente humana. Data da época dos romanos e os árabes a conheciam por Yevorah, que significaria, sugestivamente, cruzamento ou encruzilhada. Ebora dos romanos, yevorah dos árabes e finalmente Évora dos portugueses.
Muitas e uma só. Évora fica bem junto ao Algarve, que provém do árabe al-gharb ou Ocidente. Trata-se da região mais rústica de Portugal, e também a que mais impressiona o viajante, pela beleza de seus espaços e sua força telúrica. É cercada pela natureza, como de resto Estremoz e Elvas. O cenário é quase mouro: casas sempre caiadas de branco, com janelas amarelas, de um só pavimento, distribuídas por um sem-número de ruelas estreitas e tortas. Terra salpicada de oliveiras, o Alentejo poderia perfeitamente ilustrar qualquer página da Bíblia Sagrada. E isso seria válido para o Alcorão também, se este aceitasse imagens.
Uma das mais belas e antigas universidades da Europa fica precisamente em Évora. E foi lá, naquele espaço do século XV, que se verificou o Colóquio Internacional Escravatura e Mudanças Culturais, que a Unesco promoveu, no final de 2001. Em 1536, Évora foi a sede da Inquisição em Portugal. Agora, simbolicamente, comportava um evento voltado para a confraternização entre os povos e as culturas diferentes.
Decididamente, o mundo mudou. Historiadores, geógrafos, antropólogos, linguistas do mundo inteiro buscavam, precisamente ali, as raízes da escravidão moderna. Estudiosos como José Capela, Alberto da Costa e Silva, Alfredo Margarido, Joel Rufino dos Santos se debruçaram durante alguns dias sobre a formação do mundo à época das chamadas Descobertas e, também, sobre a luta dos povos colonizados. Convocado pela Unesco, eu fui um dos 17 expositores do Colóquio. Uma honra. Minha fala versou sobre o Quilombo dos Palmares.
Fui o último a intervir no Colóquio. Aquele foi, talvez, o maior momento da minha atividade como historiador. O meu destino intelectual foi como que traçado naquela encruzilhada.

Ivan Alves Filho é jornalista e escritor, e colaborador da Fundação Astrojildo Pereira 

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