Discurso Posse ACL
Caríssimos membros da muito honrada Academia Carioca de Letras, colega
Sonia Salles, Senhores e Senhoras, amigos queridos, meus adorados familiares, é
com imenso prazer que essa historiadora lhes fala. Pois, além do prazer de,
doravante, integrar esta Casa, existe também a admiração pela cultura dos
confrades, por seu profundo sentido das realidades humanas, cuja riqueza se lê
através do percurso e das convicções de cada um. Convicções plenamente vividas
nesta Academia Carioca, Casa que oferece aos seus membros um pacto com o espírito
e com as letras.
Prazer, entusiasmo e encanto me trazem aqui, pois por décadas, tenho me
perguntado sobre as afinidades que ligam Letras e História, Literatura e
Memória. Estar sob esse teto, é poder, graças ao convívio com os confrades e ao
que aprenderei com eles, trazer algumas respostas a essa questão.
Porém, pertencer à Casa, estar entre os seus
membros, honrá-los e prestigiá-los é, também, lembrar. Lembrar, enfim, os que
não estão mais. Dar-lhes vida, fazê-los presentes nesta tarde, quitar o dever
de reconhecimento em relação a eles. Vemos aí a função mesma da história:
trazer o passado ao presente. Homenageio-os, então, ainda que de forma modesta,
pois haveria muito a dizer dos grandes nomes que foram meus predecessores na
cadeira 32.
Começarei
por José Gabriel Lemos Brito, historiador e autor de uma biografia de Frei
Caneca e de uma História Econômica do Brasil Colonial. E Mário da Veiga Cabral,
professor do Instituto de Engenharia e Instituto de Educação e autor de vasta e
duradoura obra didática nas áreas de Geografia e História. Ambos, sinceros conhecedores
da vida econômica e das idéias políticas, foram mestres na ciência histórica por
meio da qual tentaram capturar a profundidade do passado, além de se engajar na
batalha por melhorias no ensino da disciplina. A busca da palavra justa, um
consenso dos fatos político-militares, o rigor nas datações, o pontilhismo
cronológico fizeram de suas obras um retrato das ciências humanas, na primeira
metade do século XX. Ciências preocupadas, então, com os fatos significativos
do passado da nação.
Também ocupante da mesma cadeira foi Francisco Cavalcanti Pontes de
Miranda, jurista, filósofo, matemático, escritor, senhor de uma carreira
brilhante, que despontou aos dezesseis anos na Universidade de Oxford e
culminou com uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Senhor de trezentas
obras traduzidas no exterior, foi do engenho de Mutange, no Ceará, para postos
diplomáticos no exterior. Seu ofício não foi mera profissão. Mas, um modo de vida,
um estado de espírito, e, por que não? Foi
uma visão de mundo. Intelectual brilhante, familiarizado com os autores
europeus, em especial os alemães, o escritor e jurisconsulto Pontes de Miranda
difundiu novos métodos e concepções do Direito no Brasil. Sua obra, pioneira em
diversos setores, se distribui por quase todos os campos da ciência jurídica,
do Direito Constitucional ao Civil, do Processual ao Comercial.
E, finalmente, Dahas Zarur, jornalista, autor de vários livros sobre a
Santa Casa de Misericórdia, instituição fundada, em 1582, por Padre Anchieta, teto
que acolheu por séculos nossas crianças “enjeitadas” em sua Roda de Expostos. Misericórdia
da qual Zarur foi Provedor por décadas a frente de gestões apaixonadas e
controvertidas. Para alegria de todos os que prezam a história do Rio de
Janeiro, a Santa Casa tem, agora, como diretora cultural, minha querida
professora Maria de Lourdes Horta, irmã do saudoso Luiz Paulo Horta.
Todos eles ocupantes da cadeira 32 fundada por Mário Cochrane de Alencar
advogado, poeta, jornalista, contista e romancista brasileiro. Filho de José de
Alencar, protegido e amigo de Machado de Assis com quem mantinha relações
filiais, - como analisou em ensaio sensível e recente Antônio Carlos Secchin –
e, finalmente, membro da Academia Brasileira de Letras, Mário de Alencar,
talvez seja quem melhor represente o espírito humanista que deve presidir as
academias. O compromisso do intelectual, do acadêmico com o país das Letras, com
a defesa de valores desinteressados como a Liberdade, a Justiça ou a Razão, com
projetos coletivos que beneficiem o livro e a leitura, foram o seu.
Compromisso, aliás, que fez Mario de Alencar lutar incansavelmente para que o
Silogeu Brasileiro, atual Academia Brasileira de Letras, ganhasse um teto. O
curioso é que laços familiares me unem a essa cadeira, pois, ainda venho a ser
parente de Mário Cochrane de Alencar. Minha avó, Lucy Cochrane Simonsen, assim
como Roberto Simonsen, seu irmão, eram filhos de Robertina da Gama Cochrane, - de
casada, Simonsen -, filha de Wallace da Gama Cochrane, meio irmão de Georgina
Augusta de Alencar, mãe de Mário.
Laços de família à parte, a lição dos antecessores desta cadeira,
senhoras e senhores, é a de investir sempre numa união útil a todos. União que
seja um tesouro de sensibilidades, de experiências e preocupações comuns. E,
sobretudo, união de diferenças enriquecedoras. O poeta Paul Valéry, lido por
tantos de nós, já sublinhara em relação à Academia Francesa: “Num mundo
instável, onde o poder político se encadeia ao absurdo e ao imediatismo, além
de engajado na luta perpétua por sua própria existência, a resistência à pressa, à confusão, à versatilidade das
paixões reais ou simuladas é indispensável. Pensemos numa ilha – a Academia -
onde se conservaria o melhor da cultura!”.
Ilha, “insula”, palavra que
remete ao isolamento. Mas, no caso seria apenas um empréstimo literário de
Valéry, pois as atuais academias, outrora “Societés
Savantes”, menos e menos se parecem com suas avós, fundadas entre os
séculos XVII e XVIII. Hoje, elas caminham para uma participação maior e melhor
na sociedade. A busca de sinergia entre escritores e leitores, o apagamento
entre a língua erudita e a popular, o entusiasmo pela palavra, no papel ou na
tela, no livro ou no blog, constituem
uma agenda nova para todos que desejamos trabalhar por um país letrado.
Integrada a essa proposta, ou seja, a da construção de um Brasil que
preze seus escritores, é que me pergunto se o arquipélago não seria uma
definição melhor para determinar a multiplicidade de tendências – as tais “diferenças
enriquecedoras” as quais me referi – que, atualmente, vemos se consolidar nas
variadas academias. E nessa luta pela valorização de individualidades, de singularidades
capazes de criar um novo espaço de autores, escritores, pesquisadores, porque
não discutir, nessa Casa, uma Casa das Letras, a possibilidade de a história
ser uma forma de literatura contemporânea?
Digo isso, pois é preciso conhecer a história da disciplina histórica
para saber que literatura e história já andaram de mãos bem dadas, por muito
tempo. Sem dúvida fronteiras são necessárias. A história não é, e jamais será
ficção, fábula, delírio ou cópia. A distinção que Aristóteles opera entre
poesia e história, no capítulo 9 de sua Poética
é, deste ponto de vista, fundadora.
Mas esse distanciamento desejada pelo filósofo, não condena o historiador
a ser um órfão da poïesis. A sua
inventividade nos arquivos, o seu engenho no emprego de métodos e conceitos, a
sua criatividade no uso da narrativa ou do léxico têm, em si, um sentido forte.
Ela – a inventividade, na ficção ou no
discurso histórico - é um ato criador. E sabemos: o historiador trabalha,
conjugando uma produção de conhecimentos, uma poética do saber, mas, também,
uma estética. E, portanto, o problema, como sugeriu Jacques Ranciére, não é “saber
se o historiador deve ou não fazer literatura. Mas qual literatura ele faz”[1]. Poderíamos
dizer a mesma coisa, do escritor em relação às Ciências Sociais: o problema não
é saber se ele fala do real. Mas se, por meio de sua escrita, ele oferece
condições de compreender a realidade.
Penso que o importante é não ter mais constrangimentos. É ousar. É
experimentar coletivamente. É imaginar uma História que cative, que emocione,
pois, então, ela será capaz de demonstrar fatos passados e desvelar a vida dos
ancestrais de tantos brasileiros que ainda desconhecem suas raízes. Que ignoram
sua identidade. Que antipatizam com a vida dos ancestrais. Essa história hibrida
existe e é chamada por alguns historiadores de creative-history[2].
Mas meu papel aqui, hoje, é cansá-los um pouquinho, e vou fazê-lo
lembrando que, desde a Antiguidade, se tenta extrair da história as suas bordas
literárias. De Heródoto a Tucídides, os debates sobre, se o historiador poderia
embelezar, idealizar ou caricaturizar, existem. A história, então, se misturava
à poesia, ao mito, ao elogio, à grandiloqüência. Veja-se Heródoto, Tácito e
Tito Lívio, divididos entre o panegírico e a verdade. Como que antecipando o
relativismo em que vivemos, eles intuíam que a verdade absoluta e objetiva não
existe. Existe, sim, aquela que é construída subjetivamente pelo discurso de
cada um.
Eis porque, para muitos, as formas
literárias seriam uma ameaça. A severidade deveria estar presente nas
genealogias bíblicas, nos nomes de reis gravados nas acrópoles, nas efemérides
dos pontífices. Houve sempre quem discordasse. Cícero por exemplo. Para ele, o
simples narrator, não bastava. O exornator – o que adorna – deveria
exibir todas as qualidades da sua escrita.
Mais tarde, na época clássica, quando
surgem os primeiros tratados sobre o que seria a matéria histórica, o pregador
e ensaísta Pierre le Moyne no seu De
l´histoire anunciava que “era preciso ser poeta para ser historiador”. Na
contramão, seu contemporâneo, Jean Bodin, pregava a importância da “historia nuda”: despida, sóbria, simples direta”. O debate
prosseguia.
Até o século XVII, momento do nascimento das Belles-Lettres, ou da chamada República das Letras, uma comunidade
abstrata reunia poetas, filósofos, moralistas, historiadores e até astrônomos[i].
Com a proliferação de salões literários, academias, mecenatos, da imprensa e,
sobretudo, da codificação de uma linguagem definindo o que fosse o “homem de
letras”, o historiador se tornava, por osmose, também um escritor e vice-versa.
Um era o outro. Os romances de Walter Scott demonstram que o mesmo escritor que
idealizava cavaleiros e castelos, usava, como qualquer historiador, as
informações extraídas das crônicas medievais, conservadas em velhas bibliotecas
ou arquivos.
Outro exemplo importante da afinidade entre literatura e história, temos em
Chateubriand. De seu Ensaio sobre as
Revoluções ao Memórias de
Além-Túmulo, ele fez de tudo: história de sua família, autobiografia,
história do Antigo Regime, da Revolução de 1789 e de Napoleão. No início do
século XIX, os historiadores-escritores inspiraram uma geração de
escritores-historiadores com seus temas, cronologias e narrativas. O Ivanhoé Walter Scott foi seguido por Notre Dame de Paris, de Victor
Hugo, de Os Chouans de Balzac
e dos romances de capa e espada de Alexandre Dumas.
Alguns como Alfred de Vigny, e entre nós, José de Alencar, tinham o zelo
de citar ao pé da página, os documentos históricos dos quais extraíam
informações para sua ficção. O uso de mapas antigos, imagens, descrições,
diálogos, detalhes e até viagens – como a que fez Chateubriand à Itália para
escrever Os mártires -
“vivificavam a história”. Lembro aqui que, décadas mais tarde, Marguerite
Yourcenar fez a mesma viagem para escrever seu Memórias de Adriano. Tal conjunto de fontes documentais
sempre permitiu ao leitor acreditar que, apesar da distância, os homens do passado
eram dotados de vida e habitados por paixões. Torneios, raptos, festas e crimes
faziam de duques, princesas e reis, contemporâneos dos leitores, tão bem
descritos, vivos ou “ressuscitados” como diria o historiador Jules Michelet.
Reações, sim. Na universidade de
Leipzig, Ranke recusava qualquer linguagem poética e brandia o que denominava
“imparcialidade”. Segundo o mesmo autor, dever-se-ia fazer história “cheio de
calma soberana”. Conseguiu? Não, totalmente. Quando teve que descrever a
bravura do rei francês Francisco I, na batalha de Milão, Ranke usou os mesmos
artifícios que criticara: metáforas, exortações, e até o “Quem sabe se...”, o
primórdio da história contrafactual que começa sempre com o “Se’: Se Getúlio
não tivesse se suicidado? Se tivéssemos perdido a Guerra do Paraguai? Se Dilma
não tivesse vencido? Ora, exatamente por permitir a conversa entre literatura e
história, ficção e fatos é que, junto com Michelet e Macaulay, Ranke vendia
tantos livros quanto hoje são vendidos best-sellers
que tratam da II Guerra Mundial![ii]
Usando as mesmas linhas cruzadas
entre ficção e história, Balzac fez pela França o que nenhum historiador na
época conseguiu fazer para a história do Egito ou de Roma: ele pesquisou,
registrou, explicou estabeleceu a significação das ações e dos protagonistas.
No século XIX, tratou de questões que a historiografia foi buscar apenas, em
meados do século XX: a evolução social, suas hierarquias, práticas e tensões
entre grupos, as idades da vida, a moradia, os hábitos, o lazer, o sexo, enfim:
um programa de história social. Com o agravante de que, aos olhos do leitor, seus
romances são mais autênticos, mais demonstrativos, resumindo, mais verdadeiros
do que qualquer tese universitária. A
Comédia Humana, com seus vários personagens e cenários, tornou mais
visível do que nenhuma outra obra, a sociedade pós-revolucionária francesa.
A agenda dos escritores realistas – no Brasil temos o maior representante
em Machado de Assis – não era muito diversa de um historiador, hoje: vontade de
descrever a realidade sem idealizá-la, interesse pela vida do povo e as coisas
do cotidiano, evocação dos problemas sociais da época. Mas esse excesso de
realidade não seria daninho? Flaubert em
carta a Louise Collet profetizava que “a literatura iria tomar os contornos da
ciência” com seu interesse pelo real, pelo vivido ou pelo quase jornalístico. [iii]
Tinha razão. Para escrever Germinal,
Emile Zola assistiu a reuniões sindicais, desceu nas minas de carvão e estudou
obras de grandes alienistas para reproduzir os sintomas de doenças
profissionais que atingiam os mineiros. Nos Estados Unidos, John Steinbeck visitou
e percorreu os campos de imigrantes da Califórnia para escrever As vinhas da ira. As Letras se deixavam
impregnar, mais e mais, de Ciências.
A partir de 1870, também os historiadores adotaram “um ponto de vista estritamente
científico” – como resumiu um deles, o positivista Gabriel Monod[iv]. Mas
o problema prosseguia: quando havia literatura demais, a história desaparecia.
Quando havia de menos, não sobrava nada. Se, durante o Romantismo, a história
vivia em osmose com a literatura, à medida que a disciplina se
institucionalizava, nas universidades, nas cátedras, nos concursos, esse
convívio, antes visto como benéfico, passou a ser considerado muito narrativo,
lírico e até patético – pateticismo do qual foi acusado injustamente, por
exemplo, Michelet. A regra, então, foi fazer do historiador uma criatura
independente, descolada do homem de letras. Doravante, sem emoção, sem
tendências e sem aparatos, a História convergiria para a história-ciência.
O cientificismo e o positivismo, presentes na literatura realista,
impunham a objetividade como regra. O importante era buscar o fato. Descrevê-lo
como se o historiador estivesse em cena, com lupa e microscópio à mão, e,
sobretudo, com linguagem comedida e policiada por métodos e teorias. Enquanto a
literatura se libertava, a história se prendia mais e mais às corporações, aos cargos
na carreira, aos arquivos, construindo zelosamente as bases da chamada Escola
Metódica.
É nesse momento que observamos a
ruptura, ruptura voluntarista e imposta por um determinado grupo de
historiadores-funcionários-universitários, entre o historiador - escravo do
real, da seriedade, da ciência. E o escritor, senhor da arte da imaginação e da
subjetividade.
Não há tempo aqui para descrever o peso da escola Metódica na
consolidação de textos pesados, nos quais o “Nós” majestático substituía o Eu
narrador. Em que notas de rodapé tomavam páginas inteiras e a obrigação de
debates teóricos empestava os livros de História. A partir dos anos 60, o marxismo fez o resto:
a camisa de força das “lutas de classe”, do predomínio das interpretações
econômicas sobre o cultural ou o social, das dezenas de anexos com dados
quantitativos, enterrou definitivamente a possibilidade de uma narrativa
sedutora. Eric Hobsbaw, historiador marxista inglês, talvez seja a única
exceção a essa maré de textos que se lê com o mesmo cansaço com que se escalam
montanhas. O pior era o sentimento de transgressão ou lesa-cientificidade que
se tinha ao romper com tais pressupostos.
O curioso, porém, é que mesmo autores ditos marxistas como Fernand
Braudel, escreveram clássicos como O
Mediterrâneo no tempo de Felipe II, verdadeiro afresco com intrigas,
ações, um herói, (o próprio Mediterrâneo) e metáforas as mais variadas. Ou,
outro exemplo, Georges Duby que ao publicar seu Guilherme, o marechal, teve a coragem de dizer que escreveu um
livro que ele gostaria que se lesse “como um romance de capa e espada”.
Ao final dos anos 80, vários historiadores se insurgiram contra a
servidão voluntária, a obediência cega aos métodos marxistas e quantitativistas
que vicejavam nas universidades. Lawrence Stone, Georges Duby, Nathalie Davies
entre outros resolveram dar prazer ao leitor. Resolveram dar prazer, mas, também,
ter prazer na redação da pesquisa[3]. O
resto? O resto se seguiria com as regras do ofício: rigor, honestidade, ritmo. A
moda das biografias, a necessidade das descrições no lugar das explicações, as “artes
de contar” esmagaram a obsessão com as estruturas. Historiadores do porte de
Michel de Certeau, Paul Veyne, Paul Ricoeur[v],
entre outros, demonstraram, cada qual com seus métodos, que a história tinha
necessidade de intrigas, de figuras de estilo, de cenários. Veyne chega a dizer
que não há “diferença entre história e ficção” ou que “a história é um romance
verdadeiro”. Enfim, os debates são
profundos e não vou submergi-los com eles.
Mas eles desembocaram numa mudança. E o que interessa, hoje, é discutir
melhor o papel e a definição da “não ficção” – pois a história é assim
considerada. Ela está num mesmo saco, junto com as reportagens, os guias de
viagem, as autobiografias e coletâneas jornalísticas. A história, como os
demais textos, tem uma função cognitiva – ela informa, explica, interpreta,
ensina, transmite. Mas ela não é só uma coleta de fatos. É, sim, uma forma de
educação cidadã. Ela pode atuar na praça pública, pois participou das lutas
pela liberdade e pelas verdades, lutas que atravessaram o século XX. Ela serve
para combater a indiferença, a intolerância, a amnésia. E para fazer a História
avançar no século XXI, não se trata mais de repetir Walter Scott ou Balzac. Não
se trata de renunciar a todas as regras do ofício. Não se trata, tampouco, de
reconciliar história e literatura, um casal que tenta se divorciar a tempos.
Mas, sim, de favorecer o encontro entre método e narrativa.
Senhoras e senhores. A Academia Carioca de Letras será o espaço
privilegiado, dentro do qual e na troca com os confrades, poderei elaborar, não
mais uma história que se “fará literária” pelo empréstimo de lantejoulas ou
plumas. Mas, uma história mais vibrante, sensível, que indague, investigue com
método, rigorosa, sendo igualmente mais reflexiva e honesta com ela mesma.
Eu comecei mencionando as ilhas de excelência que foram e são as
Academias. Gostaria de retomar a imagem para dizer que historiadores são como
Robinson Crusoé em sua ilha, se dando por missão investigar, nomear, tentar
compreender a organização dos fatos, a coerência de uma cultura, a mecânica do
social.
Como tantos colegas, faço história como se exuma um cemitério. Só que nem
sempre achamos os mortos. Ao aprofundar as escavadeiras que arranham o solo
duro com suas longas forquilhas de aço, procuramos o passado inacessível. Sabemos
que ele está lá, sob a forma de uma substância observável, tangível, cercada de
precauções de uso, suscetível de ser trazida a vida. Tal quantidade de passado
não é só terra, poeira e ossos. Pois para
dar vida aos mortos, é preciso mais do que identificá-los. É preciso um caminho
para encontrar o tom justo, o bom ritmo, a imagem, a cor, a música, a emoção, tanto
para trazê-los à superfície, quanto para descrever o seu tempo. É necessário buscar
as palavras, achar a visibilidade na invisibilidade, captar o som de passos
perdidos, o balanço de uma flor, uma sombra na calçada. Uma sombra que poderia
passar despercebida, continuar não nomeada, ninguém a alcançaria, se o historiador
não estivesse lá.
E por isso, Senhoras e Senhores, penso é preciso tentar construir uma
história que se queira também literatura, uma história-criativa. Nela, pretendo
me exercitar como o mestre chinês que, segundo a tradição, desenhava
cotidianamente um leão. Com o objetivo de desenhar, no fim da vida, o leão
perfeito.
Muito obrigada.
[1] - Ivan
Jablonka, L´Histoire est une litterature contemporaine – Manifeste pour les
Sciences Sociales, Paris, Seuil, 2014, p.19.
[2] -.Ivan
Jablonka, L´Histoire est une litterature contemporaine – Manifeste pour les
Sciences Sociales, Paris, Seuil, 2014, p.19.
[3] - Ver o
emblemático artigo de Stone “Revival of narrative”, Past and Present, 1979.
[i] - Michel
Mafessoli, La Republique des Lettres,
Paris, Gallimard, 2012.
[ii] - Sobre
o tema ver Marcel Gauchet, “Les Lettres sur l´Histoire de France de Augustin
Thierry”, in Pierre Nora, dir. Les Lieux de Mémoire, vol.2, La Nation, tomo I,
Paris Gallimard, 1986.
[iii] -
Gustave Flaubert, carta a Louise Collet de 6 de abril de 1853, Correspondance,
Vol.2, Paris, Gallimard, 1980, p.289.
[iv] “Du
Progrés des ètudes historiques em France depuis le XVIe siècle”, Revue
Historique, Tomo I janeiro-junho, 1876, p.5-38.
[v] - Paul Ricoeur,
Temps et récit., vol. I, Paris, Seuil, 1983, Jacques Ranciére, Les noms de
l´Histoire, - Essai de poetique de savoir, Paris, Seuil, 1992.
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