sexta-feira, 18 de outubro de 2013

DIÁLOGO COM FERREIRA GOULART POR DIOMIRA FARIA -MEMBRO DA BOW ART INTERNATIONAL.

                           Pintura rupestre da Serra da Cavivara em Raimundo Nonato, Piaui, Brasil
 DIOMIRA FARIA.
A leitura do comentário de Ferreira Goulart sobre a arte contemporânea me inspirou a escrever este ensaio, a defender a arte, mas não será uma defesa da arte contemporânea, tampouco da  moderna. Mas sim da arte primitiva que tanto me lembrei a partir do desabafo de Goulart. Será que a arte primitiva, não somente daqueles que desenhavam nas paredes das cavernas e grutas, mas incluindo a arte dos aborígenes da Austrália ou dos esquimós ou ainda dos índios Xakriabá sempre teve como objetivo a estética?  Pois disse Goulart sobre os urubus nas gaiolas: “...que de belo não tem nada nem mantém qualquer relação com o que, ao longo de milênios, é tido como arte.”  Será que algum sentido universal de beleza foi sempre o que motivou os artistas? Ao estudar a arte primitiva, seja representada pelas formas pintadas em paredes de cavernas no paleolítico, evoluindo para pinturas nos corpos dos indígenas, bordados com motivos da natureza, marcas no corpo de jovens guerreiros, as figuras presentes nos totens, alguns antropólogos concluíram que os objetivos pretendidos com estas representações são os mais diversos, incluindo a preparação para a guerra, o acasalamento, o fortalecimento da identidade do grupo, enfim, são símbolos que expressam aspectos culturais de determinado coletivo humano. Se pode dizer que cada manifestação apresenta uma “linguagem” artística que é inteligível para seu grupo. Se estamos de acordo com esta argumentação, podemos constatar que não é a estética o objetivo final destas diversas manifestações artísticas e sim a pretensão de expressar, difundir, transmitir ideias, uma forma de pensamento que utiliza a semiótica (sistema de símbolos) e muita técnica para demonstrar ideais que podem ser visíveis, audíveis e tactíveis. Esta característica sim é genuinamente humana. O que me pergunto é qual foi a intenção do autor desta obra tão contestada por Goulart ou qual mensagem está querendo passar para seu coletivo, ou seja, nós mesmos, a partir de uma obra que coloca urubus em uma gaiola.  Como entender? Comungo com Goulart no sentido que ficamos atordoados com manifestações artísticas as quais não conseguimos decodificar (entender) a mensagem existente. Vou dar um exemplo de algo que aconteceu comigo faz uns seis meses em uma exposição no centro cultural da UFMG em Belo Horizonte. Havia uma exposição de um jovem artista, com uma série de fotos e áudio. O áudio em francês relatava as receitas gastronômicas preparadas por um chefe de cozinha. As fotos continham o retrato do chefe e os pratos prontos. Todos usavam um calango, isto mesmo, um calango bem delineado como a carne a ser oferecida junto com arroz, fritas ou legumes. Havia uma senhora ao meu lado indignada, desorientada, perguntando a qualquer um que entrasse no recinto o que era aquilo, se era mesmo um calango...Foi embora da exposição sem respostas, sem compreensão, incomodada e acredito que nunca mais irá entrar naquele lugar. Entender a mensagem que a arte quer passar nem sempre é fácil, principalmente a arte contemporânea que se sente livre para usar quaisquer materiais e recursos existentes para transmitir a intenção do artista, suas ideias, pensamentos e mensagens. Necessitamos de familiaridade, hábito, de conhecimento para decodifica-la. Pessoalmente não gosto de urubus, dentro ou fora de gaiolas. Mas, gostaria de conhecer a intenção do artista com seu trabalho, fico curiosa com estas coisas. Quando vou a exposições, procuro ler os textos disponíveis que podem ajudar na comunicação entre a arte e o observador. O que me atordoa, isto sim, é quando as exposições colocam apenas uma placa com o título da obra, o ano, o material utilizado e nada mais, como se todos fossemos conhecedores de arte, isto sim uma insensatez. Neste caso Goulart fico tão indignada como você, mas não devido aos urubus... 

domingo, 6 de outubro de 2013

NO CENTRO DA SELVA

Só recentemente reconhecemos imensa riqueza humanitária das civilizações indígenas. Depois de cinco séculos de canibalização, será possível um futuro comum?
Por Marcelo Degrazia
Mesmo quando o cientista político norte-americano Samuel P. Huntington escreveu O Choque de Civilizações, ele se referia a conflitos entre culturas relativamente extensas e vigorosas. Em sua classificação, o devoramento de civilizações por outras, como temos feito com as nações indígenas ao longo dos séculos, não poderia jamais receber o nome de choque; talvez nem de conflito, devido à brutal incompatibilidade técnica entre elas. Aqui a classe é de canibalização. Pois é nesses termos, bem mais amplos que os projetos de lei contra os quais semobilizam agora os índios e amplos setores da sociedade brasileira, que gostaríamos de enquadrar a velha e até aqui insuperável questão indígena.
Parte da história está contada no indispensável Relatório Figueiredo, de 1967. Trata-se de uma compilação de crimes realizados sobretudo contra populações indígenas, escrito pelo procurador Jader de Figueiredo Correa a partir de dados de Comissão de Inquérito sobre a atuação do Serviço de Proteção aos Índios. O relatório, de 68 páginas, acompanha um processo de 20 volumes com 4.942 folhas, mais 6 anexos com 500 folhas.
Ali estão registrados cárcere privado e trabalho escravo de índios, tortura, roubo de terras, abuso sexual, esbulho, mortes em massa, guerra bacteriológica, ataque aéreo com dinamite, venda irregular de gado indígena etc. Os crimes, quase todos documentados e com testemunhas, muitas vezes foram mutuamente acobertados por funcionários do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), inclusive com queima de arquivos praticada em geral pelos próprios servidores públicos do extinto órgão – que deu lugar à Funai ainda em 1967.
Nas palavras de Figueiredo, “O índio, razão de ser do SPI, tornou-se vítima de verdadeiros celerados, que lhe impuseram um regime de escravidão e lhe negaram um mínimo de condições de vida compatível com a dignidade da pessoa humana. (…) Venderam-se crianças indefesas para servir aos instintos de indivíduos desumanos. Torturas contra crianças e adultos, em monstruosos e lentos suplícios, a título de ministrar justiça.”
Tribos inteiras foram dizimadas, nisso que poderíamos chamar de genocídio à brasileira, em regimes democrático e ditatorial. Mais adiante o procurador afirma, com extrema lucidez: “A falta de assistência, porém, é a mais eficiente maneira de praticar o assassinato.” Irretocável. “A Comissão viu cenas de fome, de miséria, de subnutrição, de peste, de parasitose externa e interna, quadros esses de revoltar o indivíduo mais insensível.”
Não precisamos voltar a Cabral para o registro de etnocídios em nosso vasto território. Além do extermínio patrocinado por portugueses e desses horrores compilados no relatório, que ocuparam algumas décadas do século 20, a reincidência criminosa da civilização ocidental contra as populações indígenas atravessou todos esses séculos e ainda ocorre nos dias de hoje.
Não são poucas as ocorrências de invasão por parte de grileiros, posseiros e fazendeiros, em diversas regiões do país, em conflitos que levam à morte de índios ou à expulsão deles de suas terras sagradas. Podemos encontrá-los na beira de estradas do Mato Grosso ou no centro de Porto Alegre, vidas em agonia, tristes imagens de seres humanos esbulhados de sua tradição milenar.
Canibalização civilizatória. Além das tribos contatadas, existem no Brasil dezenas de grupos indígenas que jamais trocaram miçangas ou ouro por espelhinhos , que sabem da existência de nossa subcivilização latino-americana (na classificação de Huntington…) apenas porque veem cruzar seus céus uns pássaros roncadores de estranhas asas, pois nunca as batem no ar como fazem a ararinha-azul ou a araponga-da-amazônia.
Segundo o IBGE, são 900 mil indígenas distribuídos por 305 povos, falam 274 línguas (já foram mais de mil) e ocupam apenas 13% do território que, num passado longínquo, dividiam inteiramente, entre flechadas e beijos, com centenas de outros povos já extintos. Mais os povos em isolamento voluntário – pelo menos 28 grupos de existência confirmada pela Funai.
Ainda há, portanto, no Brasil, milhares de seres humanos descendentes diretos dos povos originários da terra onde os brasileiros vivem – povos que nos últimos 10 mil anos conheceram no máximo a migração interna. Seus antepassados andavam por aqui antes de Maomé e Cristo terem nascido, antes dos livros do Antigo Testamento terem sido sequer sonhados, antes das pirâmides do Egito serem erguidas para a glória dos faraós e ainda muito antes das tabuinhas cuneiformes dos sumérios.
Nem Huntington lhes negaria a condição de civilização, possivelmente até no plural. São povos que dispensam a escrita, não precisam de história nem de literatura, porque, muito antes de nós, aprenderam algo que nunca conhecemos e que talvez nunca venhamos a descobrir: a arte de viver em natureza.
Tesouro étnico. Os povos originários são a memória anterior à humanidade, tal qual a conhecemos. Darcy Ribeiro disse que, no seu estudo de doutorado, fez amizade com um cacique capaz de recitar mais de mil nomes de sua árvore genealógica. Eles eram e são pela tradição, zelam por esse tesouro que é toda a existência de um tempo sem tempo, em especial os povos ainda fechados em seu círculo fora da história, como são os povos da floresta que ainda não tiveram contato com o Ocidente, nesses últimos 10 mil anos – para o bem deles próprios.
Essa é a imensurável riqueza confiada a nós, brasileiros (aqui incluídos os povos indígenas mais ou menos aculturados), pelos acasos da história. Que outro país tem a dádiva de conviver com suas matrizes culturais ainda vivas? Já exterminamos (nós e os portugueses) quase a totalidade desses “outros” de que nos jactamos, ao chamá-losnossos índios. Toda vez que nos cobram maior cuidado com esses povos originários, patrimônio vivo de toda a humanidade, ainda somos tentados a dar a resposta oferecida aos alemães, quando eles já estavam reconstituindo grande parte da Floresta Negra. Como afirmação de soberania e independência, dizíamos ter o direito de derrubar nossas matas, como eles derrubaram as deles. Por certo, queremos nos igualar também aos norte-americanos, que avançaram suas fronteiras agrícolas e de mineração até o extermínio praticamente completo de seus povos indígenas, patrocinado pelo Estado e com o apoio do Exército.
Já está mais que na hora de pensarmos em frear nosso avanço e começar o árduo e custoso trabalho de reconstruir o que estamos a ponto de perder por inteiro. Avançar mais para criar mais miséria, em nome da produção de minério e de grãos (o problema maior da fome nunca foi a falta de alimentos), é a prova cabal do fracasso da civilização ocidental, que até aqui não soube desenvolver um sistema econômico humanitário.
A conta desse holocausto civilizatório não pode mais recair sobre os ombros dos povos da floresta (sobre os ombros de mais nenhum povo), pois se estamos condenados a desaparecer sem o avanço contínuo da economia, deveríamos ter a humildade de aprender com quem sobreviveu, durante milênios, num equilíbrio homoestático com a natureza.
Se sobre genocídio já nada mais temos a aprender com alemães e estadunidenses, podemos ao menos tomar lições sobre como se reconstrói. São hoje 900 mil índios, mas dentro de vinte, trinta anos, poderão talvez ser 5 milhões. Será nossa maior riqueza humanitária, ao lado das populações tradicionais (incluindo as quilombolas), insuperável contribuição para a humanidade, a expressão real e concreta daquilo que muitos gostam de chamar de tolerância, num tom ufanista tal que poderíamos estendê-la até o Oriente Médio (suposto traço de caráter que no passado chamávamos de democracia racial).
Estamos chegando ao coração da selva, e lá não há trevas, mas nações indígenas milenares levando vidas fora do nosso alcance. Em nome do que seja, menos ainda da riqueza econômica, não podemos sacrificar as últimas reservas de uma humanidade mais feliz do que a nossa. Se isso acontecer, passaremos à história como coveiros da última nação indígena.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

SOMOS TODOS PRECÁRIOS, PRINCIPALMENTE COM UM CAPITALISMO SELVAGEM

“Somos todos precários”, afirma Guy Standing ao final de seu estudo sobre essa nova realidade do trabalho, nascida do cruzamento do “proletariado” com o “precário”. Vivemos em um capitalismo do desejo, da informação, das marcas, do projeto, do dinheiro e das finanças virtuais. Neste capitalismo de projeto, o precariado é aquela pessoa aturdida, que gastou suas economias em um perfume propagandeado, mas que não obteve o sucesso social. Ao contrário do excluído tradicional, ele é convidado para a festa – mas batem-lhe a porta à cara. A condição essencial do precariado é a frustração. Ela pode transfornar-se em vontade política de mudança? Não é fácil. Hoje, o precariado opta mais pela teatralidade das protestos mais numerosos que as manifestações tradicionais esquerda ou direita – mas capazes, no máximo, de constranger o Estado, não de transformá-lo.
Já faz trinta anos que a direita expôs sua receita e a repetiu até convertê-la em um novo senso comum: desmontar o Estado, privatizar, desideologizar parlamentos e partidos, controlar a mídia, financiar fundações e universidades, combater os “excessos de democracia”, submeter o Sul por meio da dívida, aumentar a exploração da natureza e financiar a economia através do déficit público e eliminação dos limites à expansão financeira. A esquerda social-democrata abraçou o neoliberalismo sob a égide da “terceira via”. A esquerda não social-democrata se social-democratizou e começou a entoar o canto repetido do retorno ao Estado social perdido (que ontem criticava). A direita passou três décadas fazendo seus deveres. Já a esquerda, não. A precarização generalizada do trabalho não esteve ausente nessas décadas. Na verdade, ninguém moveu um dedo para evitar que isso acontecesse.
O precariado, diz Standing, é uma nova classe social em formação que, embora ainda não seja uma “classe para si” (quer dizer, que se reconhece e luta por seus próprios interesses), tem já uma série de características específicas que nos convidam a entendê-la como uma entidade que promete ação coletiva própria. O precariado vive uma flexibilidade laboral nem sempre desejada e uma constante sensação de levar uma vida de má qualidade. Não equivale nem aos proletários tradicionais nem às classes médias superexploradas. Tampouco uma “subclasse” ou “a camada inferior da classe trabalhadora”. Quer boa parte das garantias dos trabalhadores tradicionais, mas não uma vida profissional como a de seus pais ou avós. Suas incertezas e inseguranças são peculiares. Consumistas e carentes de memória, seus membros parecem elegantes aos olhos dos mais velhos – que eles enxergam como dinossauros privilegiados.
Embora os sindicatos não o compreendam direito, o precariado existe e tem suas próprias características, ainda que seja apenas porque lê sua realidade de forma diferente. São pessoas bem-formadas, às quais se prometeu (na escola, na faculdade, na televisão, na publicidade, no exemplo de quem teve sorte) um mundo divertido, confortável e criativo – que nunca chega. São aqueles que viram a escada pela qual subiam ser chutada pelos que vieram antes deles. Mas que ainda não parecem ter pressa (como teve a classe operária, desde o final do século XIX). São pessoas com certa rede familiar (que se sustenta cada vez mais nos avós, mas que também está se precarizando), com uma formação que lhes permite sonhar com um futuro profissional brilhante (ao contrário do ocorreria com um proletário tradicional, condenado a um realismo inclemente). São mulheres e jovens (em sociedades onde as mulheres estão lutando para conseguir um espaço de igualdade e diferença, e onde há um aumento da esperança de vida que prolonga a juventude até os quarenta). São receptivos às mensagens de rebeldia e inconformismo herdados de 68. São urbanos (resultado do êxodo do campo para a cidade a partir dos anos 60 do século XX) e, portanto, sujeitos à condição paradoxal de estar profundamente conectados às redes, ao mesmo tempo em que estão desconectados do mundo real.