terça-feira, 29 de janeiro de 2013

A CRISE DO JORNALISMO E SEU POSSÍVEL RESGATE




Fala Ignacio Ramonet: publicações tradicionais desaparecerão como dinossauros; desafio é assegurar, nas novas mídias em rede, profundidade e sustentação
Entrevista a Raúl Zibechi,
O jornalista e analista uruguaio conversa com o também jornalista e comunicólogo espanhol, que afirma que “estamos diante de uma revolução que transborda o campo da comunicação para ser uma revolução social”
Caminhamos pelas ruas de Bogotá, onde Ignacio Ramonet assistiu ao décimo aniverśario da edição local de Le Monde Diplomatique, convidado, por Desdeabajo, coletivo editor de livros e jornais. Teve tempo, e ânimo, para fugir do turbulento centro e dedicar umas horas a percorrer o sul pobre da capital colombiana: Cidade Bolívar, onde se desenvolvem experiências de base notáveis. Não para de perguntar. Seu conhecimento de detalhes da história e da vida dos latinoamericanos permite assegurar que o colonialismo não é uma barreira intransponível.
Em certo momento, a conversa tornou-se mais sistemática, um pingue-pongue de perguntas e respostas que não tiveram nem começo nem fim.
Em A explosão do jornalismo você analisa a crise da imprensa e foca no novo poder adquirido por quem antes era leitor ou audiência passiva. É o que nós, jornalistas críticos, sempre havíamos sonhado, mas você vê, nesse papel ativo uma das causas da crise da mídia atual.
A grande transformação produzida pela internet na circulação de informação é que, onde antes dominava o que chamo de “mídia solar” — astros que enviavam seus raios de sol sobre toda a sociedade, impregnando-a com sua supremacia — acabou. Não há emissores puros, que tenham o monopólio da informação e receptores puros, que tenham de resignar-se com tal função de receptores. A revolução que vivemos é que cada receptor pode ser também emissor.
Pode fazer uma página na internet com os amigos, seu blog, facebook ou twitter. E os grandes veículos têm uma vitrine digital, onde se pode intervir fazendo comentários que contrapõem e complementam os artigos; o leitor pode indicar elementos a serem corrigidos do artigo inicial, além de fotos e vídeos. O que eu quero dizer é que a informação já não é algo limitado e fixo. A concepção da informação vem da imprensa, que é o meio que influenciou a rádio e a televisão, e sua origem é o trabalho da era industrial.
O fordismo, onde havia uma clara divisão de trabalho.
Exato. No fordismo há um projeto, um plano, e na base disso se realiza um produto terminado, intocável. Isso já não funciona nem sequer na indústria, onde aconteceu a revolução do toyotismo, nos anos 80. Fabrica-se, por exemplo, o carro que o cliente quer. A decisão já não vem da empresa, mas de baixo. Agora sucede o mesmo na mídia. Pede-se ao jornalista um artigo com certas características, mas logo os leitores vão completando-o, reformando-o, transformando-o. Por consequência, é uma obra em processo. Isso é uma revolução muito importante.
Agora, como consequência das mudanças técnicas e culturais, o leitor, a audiência, têm um poder como nunca tiveram. Se a isto somamos a crise econômica, estamos diante de uma crise dos velhos monopólios da informação. Newsweek deixou sua edição em papel, The Guardian debate a possibilidade de dar este passo, El Paísdespede um terço do seu pessoal.
Estamos diante de uma crise conjuntural ou diante de uma virada de larga duração?
O que estamos vivendo no campo da comunicação só é comparável à invenção da prensa de tipos móveis, por Gutemberg, em 1440. Ela não transformou apenas a produção do texto escrito, a difusão do livro. Também produziu o humanismo como escola de pensamento, o Renascimento e a explosão das universidades e do saber, com tudo o que isso significa. O latim deixou de ser a língua comum e começou a ser substituída pelas línguas nacionais, que foram se desenvolvendo. Agora, acontece algo similar. Estamos diante de uma revolução que transborda o campo da comunicação para ser uma revolução social. Envolve o setor financeiro, o comércio, as relações sociais e a difusão da cultura. Uma revolução tecnológica transforma tudo.
O jornalismo vive todos os efeitos deste processo. A estrutura da indústria da informação e a maneira de produzir informação estão sendo transformadas.  E é preciso lembrar que estamos apenas no engatinhar inicial, no primeiro segundo da história da internet. Algumas das realizações mais espetaculares das transformações tecnológicas, como os tablets, facebook, o Iphone, não existiam há apenas cinco anos e não podemos imaginar o que acontecerá nos próximos cinco.
E os monopólios?
Os monopólios vão sofrer. Foram a resposta da indústria empresarial da informação aos avanços tecnológicos dos anos 1960 e 70. As tecnologias anteriores eram específicas para o som, a escrita e a imagem, mas neste período convergiram para uma mesma tecnologia, que é a tecnologia digital. A partir desse momento, não há diferença em como se constroi um texto, um som ou uma imagem. Constroem-se da mesma maneira, com as mesmas máquinas, os computadores.
A internet traduz uma nova forma de expressão. Os seres humanos usaram, desde o começo da humanidade, três sistemas de signos para comunicar-se: a palavra, o desenho e a escrita — a mais recente. Com a internet, aparece um quarto, que é a mescla dos três, mais uma dimensão complementar: a velocidade e extensibilidade, que permite alcançar o planeta num segundo. Depois de tudo isso, a paisagem da comunicação não pode permanecer como era.
Ao que parece, a mídia mais mais afetada é a impressa, que, segundo você, está se extinguindo como os dinossauros.
Porque a imprensa continua sendo pesada. Além de ser o meio mais antigo, é o mais marcado pela era industrial, com operários, máquinas e toda a lógica da produção fabril. Por isso, é tão afetada pelas mudanças.
Estamos assistindo a uma ofensiva repressiva que busca controlar a internet e que se manifesta, entre outros fatos, no fechamento do Megaupload. Essa tentativa de controle pode triunfar, ou está destinada ao fracasso?
O problema é que essa transformação radical não tem sistema econômico. O sistema anterior, que hoje tornou-se arcaico, tem muitos defeitos — mas é muito rentável. Todos os jornalistas do mundo que seguem empregados podem viver porque trabalham em meios tradicionais, mas os meios surgidos na era da internet têm enormes problemas para sobreviver, não estão acoplados a um meio tradicional ou multimídia importante. Como a cultura dominante na internet é a gratuidade, o problema é: de quê viverão os criadores, autores e jornalistas? Haverá um declínio da criatividade? Isso é um problema real.
Com o controle e o fechamento dos veículos, busca-se frear a “pirataria”. Por um lado, há um movimento da sociedade para que a internet siga sendo gratuita. Por outro, surge o Wikileaks, que estabelece a mesma problemática, mas em outro terreno impensável fora da internet. Estamos diante de uma situação similar ao escândalo de Watergate ou aos Documentos do Pentágono [Pentagon Papers], em que um informante passa dados reservados a um veículo — Washington Post e The New York Times, respectivamente. Nesse sentido, nada mudou. Mas o que, sim, muda é a quantidade de inforrmação que se pode difundir agora, e a massividade é a mesma.
Toda a sociedade está se digitalizando e todos os arquivos, desde os da saúde até os das forças armadas, estão sendo digitalizados. Enquanto há alguns anos eram necessários caminhões para carregar toda essa informação, hoje com um click em um computador movimentam-se milhares e milhares de documentos desmaterializados, que podem se propagar para todo o planeta. O que o Wikileaks fez foi difundir dados que prejudicam pessoas com poder, e isso que criou a situação que converteu Julian Assange no inimigo público número um dos Estados Unidos.
Na América Latina temos um forte debate sobre o comum, em que se afirma que os bens comuns não devem pertencer a nehum proprietário privado. Você crê que a internet deve ser considerada um bem comum da humanidade?
É um debate que afeta a cultura, e o que dizemos é que a cultura deve circular sem travas, porque isso beneficia o ser humano. Na medida em que a internet é hoje o maior difusor de cultura, creio que deve circular gratuitamente como um bem comum. Agora, aparece outro problema: o que fazer com os direitos dos criadores? Hollywood diz que a produção criativa tornou-se mais difícil porque a pirataria tira-lhe 15% a 20% dos lucros. Os principais produtores musicais do mundo desapareceram. Quase não se vendem mais discos e o CD tornou-se defasado em apenas 15 anos, como acontece com tudo o que é material. É evidente que a música pode circular como um fluxo, e isso acontece com todas as demais produções. Por isso, há um dilema. Ou o Estado assume este tema da mesma forma que assume a produção e circulação de eletricidade, o tratamento e distribuição de água, ou será preciso encontrar uma fórmula mista, para que o preço seja acessível aos usuários e garanta, ao mesmo tempo, uma remuneração para os criadores. O problema é que mesclar Estado com cultura é algo muito delicado. Porque pode haver a tentação de favorecer alguns e prejudicar outros.
Mas o debate existe e está muito presente, como no caso da Ley de Medios, na Argentina. Você acredita que na América Latina estamos em a caminho de solucionar esse debate?
Em nenhum outro lugar do mundo este tema está sendo debatido como na América Latina, onde as discussões despertam, aliás, muita paixão. A informação era um monopólio do setor privado que fazia o que queria. Além disso abusava, como no caso da televisão, de um direito que não é do setor privado: as ondas radioelétricas são propriedade do Estado, que as concede e pode exigir do empresário que se comprometa com uma série de objetivos (como os culturais) e, quando o operador não os respeita, retirar a licença. O que aconteceu na América Latina é que se manejou durante muito tempo a informação como um monopólio a mais do setor privado. Por isso falamos de “latifundios midiáticos”. A questão é como reduzir essa dominação, preservando a pluralidade — porque a sociedade se enriquece quando existem vários pontos de vista.
Em vários países, criou-se um serviço público da informação, como os existentes em toda a Europa. O melhor exemplo é a BBC inglesa, que tem uma estrutura de controle separada do Estado. O chamado “quarto poder” precisa ser organizado fora do governo, com suas próprias estruturas de controle, para que esteja ao serviço do público e não de um governo ou do setor privado. Creio que, na América Latina, o debate está tão acirrado porque estamos dando os primeiros passos, saindo de quase um século de imobilidade. Quando algo começa a se mover, os afetados colocam-se em uma situação de guerra, sobretudo porque também estão sendo afetados pelas mudanças tecnológicas e a revolução da internet. Essa confluência levou os donos dos veículos a uma postura muito intransigente.
Que tipo de jornalistas deveriam surgir nessa nova realidade? Qual é agora a função do jornalista? Já não somos os que iluminamos o leitor ou uma audiência passiva. Além disso, está surgindo uma multiplicidade de veículos independentes criados e dirigidos por jornalistas que em muitos países possuem um papel muito importante.
É o momento de nos repensarmos. Fazer bom jornalismo sempre foi e continua sendo difícil. Ter acesso a tecnologias que permitem fazer coisas impensáveis anos atrás, o fato de que da minha casa eu possa fazer uma televisão global, é muito importante. Mas essa revolução de ferramentas não soluciona a questão do conteúdo. O problema, portanto, é o mesmo de sempre. A principal mudança é a interatividade da qual estamos falando. É possível fazer um novo jornalismo do tipo Wikileaks, colocar na web as notícias e permitir que as pessoa interpretem e façam o que quiserem com essa informação. É possível fazer jornalismo cívico, como o que fazem algumas associações dos Estados Unidos, o chamado jornalismo sem fins lucrativos. Como a maioria das grande empresas estão em crise e já não têm recursos para financiar investigações sérias, o jornalismo está perdendo qualidade em escala mundial — e qualquer cidadão sabe que um jornalismo de qualidade é indispensável para ter uma democracia de qualidade.
Aquela prática dos editores, de poupar dois ou três jornalistas do trabalho cotidiano, durante algumas semanas, para que investigassem um tema importante, já não acontece…
Não há recursos para tanto, menos ainda para enviar uma equipe a outra parte do mundo, a produzir notícias. Por isso, o jornalismo de investigação, que é um gênero nobre, está desaparecendo. Isso está ligado ao declínio da democracia atual. Porque a democracia só pode funcionar se surgem críticas e demandas da sociedade, que sempre foram transmitidas e refletidas pelo quarto poder. Quando este não cumpre sua função, a coisa pública começa a decair.
Por isso, algumas fundações criaram o jornalismo sem fins lucrativos. Uma fundação dos Estados Unidos propôs-se a funcionar como um comitê de redação. Pede aos jornalistas que lhe sugiram temas de investigação seriam inadmissíveis em seus jornais. Quando chegam as propostas, a fundação seleciona e financia investigações que considera mais adequadas e mais tarde as difunde, através dos meios. Existem somente há quatro anos e já ganharam dois premios Pulitzer. Quero dizer que a sociedade começa a produzir os elementos que compensam a decadência do jornalismo de mercado. Mas as velhas leis do jornalismo, como a checagem da informação e o rigor, continuam válidas.
De que forma a proliferação das publicações de base, ou comunitários, como acontece na Argentina, pode contribuir?
Estive em encontros de rádios comunitárias, de blogueiros, de contrainformação. Têm a grande riqueza do que vem do terreno, onde palpita a vida cotidiana. São muito mais interessantes quando narram a vida que os outros não veem, do que quando editorializam. Essa riqueza extraordinária pode ir do local a uma escala mais ampla, porque há experiências que, ainda sejam locais, interessam a qualquer ser humano, em qualquer lugar.
O bom jornalista não editorializa seus textos? Ou o faz através da voz dos outros?
Acho que só se deve editorializar a partir de fatos concretos. Essa é a qualidade de um bom editorialista: estabelecer de conexões entre fatos que, em princípio, não estão relacionados. A primeira função do jornalista é dar informação. A partir daí, deve-se construir cidadania, difundir materiais que vão permitir aos cidadãos como sujeitos, ser mais dignos.
Apesar de um tom pessimista, em alguns de seus últimos trabalhos você assinala que o jornalismo do futuro é aquele que ajuda as pessoas a compreender o que acontece. A mente pensa com ideias, não com informação…
Há vários estilos jornalísticos. Acredito que a reportagem é insubstituível e há excelentes repórteres com a qualidade de texto que este gênero requer. Além disso, há a investigação, a análise econômica e geopolítica; mas no fundo trata-se de ajudar a compreender uma realidade em mudanças. Tecido e texto têm a mesma raiz epistemológica, um texto é um tecido. Os jornalistas têm que tecer textos para propor uma visão que permita a cada cidadão situar-se dentro de um contexto e saber qual é a sua função no relato coletivo.
Você tem assegurado que publicações que apostem nesta fórmula terão êxito.
É caso do jornal alemão Die Zeit: muito denso, com muita letra, textos difíceis, e ainda assim é o grande êxito da imprensa europeia dos últimos anos. Seguiu um pouco o caminho do Le Monde Diplomatique, porque é necessário recordar que vivemos nas sociedades mais educadas da história. Nunca houve tantos estudantes, tantos universitários, mas, ao mesmo tempo, a informação degradou-se e envelheceu, com uma enorme confusão entre informação e distração. Isso não pode satisfazer pessoas inquietas, que foram educadas e são exigentes mesmas, o que as leva a buscar informação de qualidade.
O diário mexicano La Jornada também creceu por esses mesmos motivos. Compreender o caos atual motiva e mobiliza muita gente.
Só encontraremos o fio de Ariadne para sair do caos atual refletindo em conjunto. Neste caminho, um jornalismo como o que mencionamos terá um papel relevante.
E é um contra-modelo, diante da mídia que coloca a informação nos espaços que a publicidade não ocupa…
É muito triste comprovar que muitas publicações tornaram-se dependentes da publicidade, o que falsifica a informação oferecida. O jornalismo de qualidade deve preocupar-se com a autonomia financeira e para isso deve-se associar os leitores ao veículo.
Estamos diante de um desafio geracional muito forte. No mundo da internet, surgem criadores de 12 e 13 anos que são capazes de fazer programas inovadores. O que te sugere a emergência dessas novas geracões?
É uma lição de humildade para os velhos jornalistas. Essas gerações são as que estão transformando as tecnologias e nos colocam diante de um desafio de escrever pensando em pessoas que não conheceram certas coisas. Devemos escrever pensando neles, recorrendo a referências que os atraiam. Não podemos fazer um jornalismo para entendidos, porque agora todos podem ser jornalistas e isso nos coloca em um lugar novo. Antes as observações só vinham de cima, agora qualquer leitor pode intervir e te questionar.
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quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

DEMOCRACIA EM CRISE. MAS EM VEZ DELA, O QUÊ?


Dois textos sugerem: movimentos que puxaram mobilizações anticapitalistas de 2011 precisam dar um passo adiante. Tem a ver com poder
Por Antonio Martins
Quem tem consciência para ter coragem

Quem tem a força de saber que existe
E no centro da própria engrenagem

Inventa a contra-mola que resiste

Quem não vacila mesmo derrotado

Quem já perdido nunca desespera
E envolto em tempestade, decepado

Entre os dentes segura a primavera
Primavera nos dentes, Secos & Molhados

No ano frenético de 2011, os Indignados espanhóis e o Occupy Wall Street, dos EUA, foram protagonistas centrais. Levaram imensas multidões às ruas, para protestar contra o sequestro do futuro coletivo “por banqueiros e políticos”. Retomaram a denúncia do capitalismo, esquecida durante décadas em seus países. Reincluíram na agenda de debates temas esquecidos, como o crescimento das desigualdades e o surgimento de uma oligarquia financeira. Suas ideias influenciaram, em certo momento, as maiorias. Por isso, conquistaram espaços na mídia, entre os intelectuais e artistas. No entanto, sua capacidade de manter a mobilização inicial foi limitada. Iniciados respectivamente em maio e setembro, Indignados Occupy refluíram cerca de dois meses depois. Desalojados das praças que ocupavam por repressão policial, não recobraram, até o momento, a antiga potência — nem para reunir multidões, nem para influenciar o debate público. Por que?Dois textos (1 2) traduzidos e publicados há pouco por Outras Palavras convidam a buscar respostas. Seus autores partem de perspectivas distintas. O catalão Manuel Castells, um dos grandes sociólogos contemporâneos, apresenta e analisa, num texto para o La Vanguardia, a criação do Partido do Futuro, impulsionado por setores dos Indignados. Ele continua a ver, no movimento, enorme capacidade de criação política. Já o escritor e jornalista norte-americano Thomas Frank, especializado em História da cultura e das ideias, é menos otimista.Escreve, no Le Monde Diplomatique, que o Occupy, provocou enorme chacoalhão na sociedade norte-americana, mas perdeu força rapidamente, por recusar-se a formular um programa de reivindicações concreto. No entanto, algo une Castells e Frank: ambos parecem enxergar que, superada a fase do entusiasmo inicial, os novos movimentos precisam dar um passo adiante — e ele está relacionado com algum tipo de diálogo com o poder e as instituições.
Castells reconhece que muitas das iniciativas do Indignados “parecem condenadas a um beco sem saída”. Embora o movimento esteja gerando uma cultura política inteiramente nova, ao convidar os cidadãos a compreenderem e interferirem diretamente na construção de seu presente e futuro — indo além do voto, partidos e instituições –, esta invenção choca-se com uma imensa barreira. O sistema político espanhol mostra-se impenetrável. A mudança de consciência “esgota-se em si mesma quando se confronta com uma repressão policial cada vez mais violenta”. Como o movimento não pretende (felizmente, para Castells) responder com força bruta, é preciso inventar algo novo.
Partido do Futuro é uma espécie de esboço em construção, reconhece o autor. Ele terá registro legal mas não procurará disputar eleições nem, portanto, constituir bancada. Seu programa tem um único item: “democracia e ponto”. Ela materializa-se, em especial, na proposta de substituir a representação partidária por consultas diretas aos cidadãos, potencializadas pela internet: plebiscitos eletrônicos e elaboração colaborativa de leis (à moda da Wikipedia), por exemplo.
Como alcançar tal transformação? Castells adianta uma hipótese remota. Se, num dado momento, a grande maioria dos eleitores estivar disposta a “votar contra todos os políticos ao mesmo tempo”, o Partido do Futuro poderá facilitar “uma ocupação legal do Parlamento e o desmantelamento do sistema tradicional de representação, de dentro dele mesmo”.
Será razoável esperar por esta hipótese extrema? Como pressionar as instituições, até então? Esta parece ser a preocupação central de Thomas Frank, e o núcleo de sua crítica ao Occupy. Ao contrário do que recomendou Slavoy Zizek aos acampados no Zucotti Park, eles teriam “apaixonado-se por si mesmos”, diz Frank. Extasiaram-se com as inovações formais que produziram — a construção de comunidades nos espaços públicos ocupados, a horizontalidade radical que os levou a jamais escolher porta-vozes, as cozinhas coletivas, os mutirões de limpeza.
Frank não despreza estas conquistas. Reconhece que “construir uma cultura de luta democrática é muito útil para os ambientes militantes”. Mas objeta: trata-se “apenas de um ponto de partida”. O Occupy recusou-se a ir além. Significaria formular reivindicações concretas, que pusessem em xeque o “1%”. Dialogar com o conjunto da sociedade em termos que permitissem a construção de propostas comuns. Colocar na agenda temas como os empréstimos bancários usurários que arruinaram milhões de famílias; a salvação dos bancos com recursos públicos; a transferência de riquezas para os mais ricos, por meio de isenções de impostos e bônus astronômicos.
Por trás deste “grave erro tático” estariam a soberba e uma crítica ao Estado tão extrema e sem mediações que teria feito o movimento assemelhar-se, em alguns aspectos, ao discurso da direita ultra-liberal. A partir de certo ponto, diz Frank, qualquer intenção de apresentar um programa passou a ser vista pelo Occupy como “um fetiche concebido para manter o povo na alienação e no servilismo”. Em consequência, “um movimento de protesto que não formula nenhuma exigência seria”, na opinião de seus animadores, “a obra-prima última da virtude democrática”…
Este narcisismo teria levado os acampados a se fecharem num discurso cada vez mais acadêmico (Frank cita inúmeros exemplos, a partir da literatura produzida pelo movimento), hermético e… terrível, mesmo do ponto de vista estético. A advertência formulada por Zizek teria sido vã. “Os carnavais são fáceis. O que conta é o dia seguinte, quando precisamos retomar nossa vida normal. É quando nos perguntamos: ‘alguma coisa mudou’?” 
É provável que a crítica de Frank seja precipitada. Um movimento que questiona tão profundamente as estruturas de poder (e o faz com apoio inicial maciço), como oOccupy, não pode avaliado em prazo tão curto. De qualquer forma, o que tanto seu texto quanto o de Castells põem em relevo é a necessidade de debater mais profundamente, no interior da nova cultura política, o papel do Estado; as estratégias e táticas necessárias para superar, além das estruturas de poder ultra-hierarquizadas, a dominação de classe.
Esta questão precisa libertar-se, nas condições inteiramente novas das sociedades pós-industriais, dos dois paradigmas que a conformaram, nos séculos 19 e 20: a visão marxista e a anarquista. O poder de Estado não é a chave para as transformações sociais, ao contrário do que pensavam os que julgaram construir o “socialismo real”. Ele está tão marcado por relações de autoridade e hierarquia que acreditar em sua “conquista” equivale a assumir estas relações desiguais. A construção de novas lógicas e relações sociais exige, ao contrário, des-hierarquizar e horizontalizar desde já, incorporando uma pitada de ghandianismo às tradições revolucionárias anteriores: “seja a mudança que você quer”.
Mas o Estado, talvez a instituição mais contraditória de nossa época, não é apenas uma máquina de opressão. É, também, o espaço em que se efetivam os direitos. Redução da jornada de trabalho; proibição do desmatamento; punição dos que praticam homofobia; garantia de uma renda cidadã; proteção dos direitos dos imigrantes, promoção da economia solidária — onde estas e tantas outras aspirações poderão se realizar, num tempo em que as sociedades ainda são marcadas por conflitos?
Menos vistosos, por enquanto, em sua capacidade de mobilização de multidões, talvez alguns movimentos que atuam no Sul do planeta tenham encontrado soluções avançadas para tais problemas. Eles falam, por exemplo, em hackear o Estado. É um termo provisório, mas certeiro. Significa ir além da ideia ingênua da “conquista”; compreender que a máquina estatal é, por sua natureza, oposta à ideia de uma sociedade solidária e radicalmente democrática.
Mas implica, ao mesmo tempo, ter consciência de que será necessário construir uma transição. Novas lógicas e mecanismos de articulação da vida social precisam ser imaginados e postos em prática desde já. A revolução não é a conquista do poder, mas um conjunto vasto de transformações político-culturais, que ocorrem em tempos distintos e seguem a dinâmica profunda das mudanças de mentalidade.
Mas tais transformações conviverão, por algum tempo, com a velha ordem. E serão mais rápidas e efetivas se for possível “inventar, no centro da própria engrenagem, as contra-molas que resistem”. Por isso, é importante combater a rotina do poder de Estado e, ao mesmo tempo, neutralizá-la; impedir que destrua boas sementes de futuro; se possível, fazer com que rode ao contrário…
É um debate de grande relevância e profundidade. Queremos fazê-lo juntos. As leituras de Castells e Frank são um ótimo incentivo.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

O NEGATIVISMO CRÍTICO DE MICHEL HOULLENBECQ



130116-MichelHouellebecq
Romances do autor francês (na foto) provocam a reflexão sobre o mundo contemporâneo com forma inovadora e violenta de realismo
Por Alexandri Pilati*
– O mundo é medíocre – Jed terminou por dizer. – E quemcometeu esse assassinato aumentou a mediocridade do mundo.M. Houellebecq. O mapa e o território.
se agredirmos o mundo com suficiente violência, eleacaba cuspindo fora o seu dinheiro sujo;mas nunca, nunca nos devolve a alegriaM. Houellebecq. A possibilidade de uma ilha.
Talvez Michel Houellebecq seja o maior fenômeno literário europeu depois de José Saramago. Seus livros vendem muito, tanto na França quanto em outros países e diz-se que a mudança de editora que protagonizou em 2005 movimentou uma das maiores somas do mercado editorial europeu, chegando próxima de 1 milhão de euros. Nascido em 1956, o autor envolve-se em inúmeras polêmicas e seus romances são ou odiados ou idolatrados por milhares de leitores ao redor do mundo. Nisso, Houellebecq é comum; é um autor bem sucedido do nosso tempo. No Brasil, estão disponíveis os romances Partículas elementares (Ed. Sulina, 1999), Extensão do domínio da luta (Ed. Sulina, 2011), Plataforma (Ed. Record, 2002), A possibilidade de uma ilha (Ed. Record, 2006) e O mapa e o território (Ed. Record, 2012). Há ainda publicado em português o volume Um escritor no fim do mundo (Ed. Record, 2011), uma interessantíssima narrativa de viagem de autoria de Juremir Machado da Silva, que é tradutor e amigo de Houellebecq e junto com ele viajou à Patagônia.
Mas no que é incomum esse ótimo romancista de nosso tempo? Gostaria de, neste momento, indicar algumas questões que julgo importantes da forma literária do autor francês a partir de seus dois últimos romances, O mapa e o território A possibilidade de uma ilha. No entanto, acredito que a leitura em conjunto de seus romances pode ser ainda mais reveladora de uma tendência à formalização de um realismo crítico inovador que garante à obra de Houellebecq uma posição de destaque no cenário literário atual, não apenas pelas grandes cifras que gera e pelo grande público que atinge, mas pela sua capacidade de dar equação literária a uma observação reveladora de impasses importantes do mundo contemporâneo.
Uma das principais constatações do leitor dos romances de Houellebecq é a de que as suas narrativas dão forma a um tipo muito especial de negativismo. Aparentemente, elas advogam que não há saída para humanidade ou possibilidade de crença em algum tipo de redenção. Os personagens caminham para a morte, o mundo é insolúvel, não há força utópica que dê sentido às relações sociais. Ben Jeffrey, num dos bons estudos disponíveis sobre a obra de Houellebecq, desenvolve a hipótese de um “realismo depressivo” (depressive realism)i, procurando explicar como o negativismo faz parte de uma espécie de super-consciência do mundo, que renega ilusões. Se Jeffrey diagnostica bem a ideia de super-consciência como definidora do sentimento dos personagens centrais e dos narradores de Houellebecq, seu trabalho deixa em aberto o desenvolvimento da discussão acerca da função que tal super-consciência desempenha na estrutura da obra. Nos dois romances que discutimos aqui, essa super-consciência pode ser lida nos termos de uma função fortemente política, tendo em vista que os seus protagonistas são intelectuais que não se furtam a pensar nas coisas más que definem o mundo contemporâneo. Podemos observar essa postura, lembrando que a percepção sagaz da miséria humana deixou há algum tempo de ser a pauta principal para os intelectuais, constituindo uma omissão política que tem se intensificado num mundo-mercado em que a gravidade reflexiva na arte e a percepção do mal sistêmico na sociedade são, no mínimo, inconvenientes. Por aqui começa-se, pois, a acreditar que o negativismo por vezes depressivo dos romances de Houellebecq pode ser tomado como força crítica que opera papel importante na perspectiva realista dos seus narradores.
Vejamos alguns outros elementos da forma narrativa de Houellebecq mais detidamente. Nesses dois romances a que nos referimos, temos um tipo muito semelhante de protagonista. Jed Martin, de O mapa e o território, e Daniel, de A possibilidade de uma ilha, são artistas consagrados e muito ricos. O primeiro é fotógrafo e artista plástico; o segundo, um humorista cáustico e politicamente incorreto. Ambos, aparentemente por sorte, conseguem destaque em seu ofício artístico, o que lhes confere, numa velocidade impressionante, uma riqueza de somas incontáveis, libertando-os, por assim dizer, de qualquer sistema social que lhes garanta a sobrevivência e lhes exija algum desacomodar-se em busca do sustento. Em suma, são dois ricaços a quem pouca coisa importa, a não ser algo de sexo, mercadorias específicas do universo dos milionários planetários, isolamento, tédio etc. Dessa maneira, nossos protagonistas podem ser considerados pessoas relativamente “desligadas” do mundo, o que garante a eles uma espécie de liberdade discursiva para avaliar as tensões e turbulências da esfera “normal” da existência, cujas contradições vão por eles sendo diagnosticadas. Esse é o espaço de classe que não só favorece como lastreia a super-consciência negativista dos narradores. No caso de A possibilidade de uma ilha, o narrador se apresenta em primeira pessoa; no caso de O mapa e o território, ele se coloca em terceira pessoa.
Não obstante essa diferença, os dois romances comungam de uma perspectiva de classe semelhante: o mundo dos milionários globais ligados ao espetáculo e ao capital financeiro. Isolados, os protagonistas, a partir da sua condição de grandes proprietários com algum conhecimento das relações humanas, expõem não apenas as misérias dos outros, mas a própria condição miserável e oca do fetichismo personificado que, em fim de contas, é o âmago de suas próprias existências. Tanto o artista Jed Martin quanto o humorista Daniel estão conscientes do vazio e do despropósito que as suas próprias expressões artísticas carregam, aumentando “a mediocridade” do mundo. Nesse sentido é revelador o trecho de A possibilidade de uma ilha, em que diz o narrador:
“Eu nunca sentira simpatia pelos pobres, e agora que minha vida estava fodida sentia menos que nunca; a superioridade que minha grana me dava sobre eles constituía magra consolação: eu podia olhá-los de cima enquanto eles catavam seus montes de entulho, as costas vergadas pelo esforço enquanto descarregavam suas cargas de tábuas e tijolos; podia considerar com ironia suas mãos devastadas, seus músculos, os calendários de mulheres peladas que decoravam suas máquinas. Essas satisfações mínimas, eu sabia, não me impediriam de invejar sua virilidade não contrariada, simplista; sua juventude também, a brutal evidência de sua juventude proletária, animal.”ii
Aqui temos a revelação da condição de classe do narrador e de sua consciência do mundo da exploração capitalista. Ademais, temos uma imagem que se impõe quase como que pertencente a um tempo anterior à tecnologia, em que o mundo de músculos, suor e lágrimas dos explorados é capaz ainda de resgatar o produtor artístico de seu abissal ensimesmamento, mesmo que esse resgate se revire em ironia na forma de apresentação de um “ápice de frustração histórica”iii. O mundo “cospe fora o seu dinheiro sujo”, mas não nos devolve a alegria.
O ensimesmamento de classe está também em Jed Martin, que, segundo o narrador de O mapa e o território:
“seria perguntado, em diversas oportunidades, o que significava, na sua opinião, ser um artista. Não encontraria nada muito interessante ou muito original a dizer, à exceção de uma única coisa, que por conseguinte repetiria em quase todas as entrevistas: ser artista, na sua opinião, era antes de tudo ser alguém submisso. Submisso a mensagens misteriosas, imprevisíveis, que poderíamos, na falta de termo melhor e na ausência de toda crença religiosa, qualificar como intuições”.iv
Há, portanto, em Jed Martin e Daniel uma fusão de isolamento de classe e de consciência dos limites da forma artística que se unem em uma espécie muito peculiar de narrativa crítica da contemporaneidade. No entanto, se colocamos o ingrediente da posição política dos narradores e de suas funções sociais na interpretação dos romances, chegamos a alguma possibilidades de leitura de seus efeitos realistas, num sentido que não seja meramente derrotista.
A primeira dessas possibilidades encontra respaldo no fato de que as subjetividades dos personagens centrais não têm vigor suficiente para criarem laços fortes entre eles e os demais participantes da trama. Não há valor que os una em algo que se possa chamar de comunidade ou sociedade. Em A possibilidade de uma ilha, o que mais se aproxima disso é a seita cientificista que será frequentada, quase à revelia, pelo protagonista, mas que será depois decisiva em seu destino. Essa fragilidade das relações humanas abre espaço na forma romanesca de Houellebecq para performances avaliativas, judicativas, conforme o caso, por parte do narrador ou do protagonista, que reforçam a consistência da representação crítica da humanidade do alto capitalismo empreendida nos textos. Ou seja, o autor põe em movimento, por um lado, o espetáculo de nossa miséria e por outro sua avaliação, não menos espetacular e miserável. É aí, no curto-circuito entre fatos de uma sociabilidade esgarçada e incessante avaliação negativista e entediada da miséria, que podemos encontrar algum potencial de realismo crítico na exposição de Houellebecq da especificidade de nossas “frustrações históricas”.
Nessas avaliações dos protagonistas está desenhado o limite existencial do mundo pós-político, ou seja, o limite existencial do mundo do espetáculo – a morte em vida; plena de subjetividades desproblematizadas. Nas frágeis conexões entre os personagens e na alternativa ácida do cinismo desencantado dos personagens centrais dos romances de Houellebecq, encontramos algum espaço para a gravidade intelectual que é anti-espetacular. Assim, uma gravidade reflexiva não afetada sustenta o realismo do autor, numa estruturação ficcional muito inteligente do discurso crítico, via ceticismo amargo. Tudo acaba mudando de sinal e o que é luminoso no espetáculo pós-moderno e pós-político é narrado como tédio, tediosamente. Trata-se, pois, de uma gravidade narrativa que, aliada ao tédio e à miséria trivial das vidas representadas, torna a leitura dos livros, em alguns momentos, uma penosa operação de confronto com as nossas próprias mesquinharias cotidianas. E, não obstante o nosso desejo de desidentificação com os protagonistas, suas avaliações e pobres relações sociais acabam por confirmar a mediocridade da nossa própria existência, ou, como vemos em um dos poemas compostos por Daniel em A possibilidade de uma ilha, nos enxergamos num espelho: “onde somente nos espera// a memória vã/ dos nossos dias mortos/ um sobressalto de ódio/ e o desespero nu.”v
Eis aí, salvo engano, algo da essência do longo comentário estético que é o Mapa e o território: o desejo de alcançar, com uma forma narrativa inquieta e inquietante, o centro ontológico do capitalismo pós-industrial, o mundo dos serviços anódinos, do espetáculo pós-político, da tecnologização da humanidade. É a marca de classe do ponto de vista narrativo que nos ajuda a ver essas coisas e que nos põe de frente com o problema: com a sociabilidade em crise, que crise é possível trazer para o âmago das formas representacionais, tais como a literatura? Nesse sentido, parece que duas coisas desempenham um papel interessante na composição dos romances de Houellebecq: a utilização criticamente “plagiária” da linguagem instrumental e instrucional da comunicação contemporânea e o trabalho ficcional com figurações do futuro da humanidade. Ambos os romances trabalham com fatos e situações que ocorrem no futuro com relação a nós que os lemos. Não sendo ficção científica pura e simples, acabam sendo ficções-diagnóstico do presente.
Em nossas projeções de futuro, comparece não apenas aquilo que consideramos para nós mesmos utópico (ainda que o uso dessa palavra tenha sido consagrado atualmente ao ostracismo ou ao mais abissal individualismo), mas também, talvez em silêncio, os nossos piores fantasmas. Com suas narrativas que tendem ao futuro e fazem pouco caso da linguagem tecnificada, o que Houellebecq faz é resgatar do silenciamento nossos fantasmas embutidos em nossos sonhos eufóricos de futuro. O elenco desses fantasmas, disperso nos romances de Houellebecq, dá corporeidade artística à desencantada frase de F. Kürnberger, tão cara a T. Adorno: “A vida não vive”. Lendo seus textos, damos de cara com o fato quase insuportável de que atualmente a vida não vive na massificação dos sentimentos, no massacre da delicadeza artística pela estética rasa do espetáculo da indústria cultural e do mercadão filosófico pós-moderno; a vida não vive na onda avassaladora de biologização do social, que tende a formar androides cujo corpo resiste à idade, mas cujas subjetividades encontram conforto ao ajoelharem-se, infantilmente penitentes, ao dinheiro; a vida não vive na maneira como a educação tem sonegado a oportunidade de emancipação em favor da aposta na instrumentalização dos jovens para jogar o jogo da caduca economia global. A vida não vive porque se tornou um brilhante e luminoso espetáculo de tédio e miséria subjetiva. A vida não vive, enfim, também porque não se reconhece como crise. E não se reconhece como crise porque, salvo em raríssimas exceções, não tem encontrado meios de se representar como crise.
Os romances de Houellebecq são a crise necessária; adentrando com coragem o mundo medíocre do capitalismo atual, eles resgatam uma substância realista e crítica que torna esse mesmo mundo menos medíocre, embora isso se faça pelo mais aparente e desencantado negativismo. Não deixa de ser utópico o gesto de formalização artística da falta de utopia, por isso é bom saber que há autores pensando o mundo com as entranhas, tal como Michel Houellebecq. Encontrá-los é ter um pouco de esperança de que a vida pode voltar a viver.
*Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília. Poeta e crítico literário é autor, entre outros, de A nação drummondiana (7Letras, 2009).

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

A OPÇÃO PERMACULTURA



Um estudioso da integração entre atividade humana e natureza defende, além da agroecologia, mudança radical de hábitos de consumo, habitação e uso de energia
Compreendida como um “sistema de permanência para uma nova cultura”, a permacultura propõe a sustentabilidade dos ecossistemas a partir de outra postura diante do uso dos recursos naturais e do consumo. Desenvolvida no Brasil há mais de 15 anos, esta prática avança com projetos de bioconstrução, construções ecologicamente corretas, “para retirar melhor proveito de sol, dos ventos, com o melhor conforto térmico e menor consumo de energia”, explica João Rockett.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, o diretor do Instituto de Permacultura e Ecovilas da Pampa – IPEP enfatiza que as discussões acerca das questões ambientais não abordam “o ponto-chave da questão”: o consumo exacerbado. “Não basta separar o lixo. As pessoas estão consumindo uma série de coisas que não precisam, porque aumentou o poder aquisitivo e a oferta de produtos. Os produtos também são vendidos em embalagens desnecessárias. Quando você compra uma cola Super Bonder, por exemplo, que tem menos de 10 cm de comprimento por 1,5 cm de largura, compra também uma embalagem que tem um palmo de comprimento, porque tem toda uma logística”, assinala. E dispara: “Existem duas maneiras de uma sociedade mudar a sua cultura ou forma de viver: uma é quando planeja e toma uma atitude em cima do planejamento; a outra é quando se chega no caos, na crise. Eu acho que, do jeito que estamos, chegaremos na crise”.
João Rockett tem experiência na área de Agronomia, com ênfase em Extensão Rural. Confira a entrevista. 
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João Rockett: Aqui no Pampa nós temos um instituto de permacultura ligado à questão do clima. Existem institutos nos demais biomas brasileiros, mas nessa região especificamente consideramos o clima, que tem uma oscilação de temperatura diferente: muito calor no verão e muito frio no inverno, tendo oscilações de mais de 20 graus num mesmo dia.
No início deste projeto, há 15 anos, construímos uma casa com uma excelente pegada ecológica, feita de palha de santa-fé. As paredes da casa foram feitas de fardo de palha de arroz, considerando que esses são materiais típicos da região. Essa casa tem uma diferença térmica de 8 a 14 graus do ambiente externo, ou seja, uma condição térmica muito alta. Também estamos multiplicando algumas variedades antigas de trigo, que aos poucos foram deixadas de lado da produção por causa dos agroquímicos. O projeto também propõe um banheiro seco, com uso zero de água, a partir da utilização de um sistema de termosifonamento e secagem das fezes. Também utilizamos filtros biológicos para banheiros que utilizam água, com o que buscamos reutilizar essa água na agricultura. Além disso, coletamos a água da chuva para reutilizá-la. Enfim, a permacultura consiste numa série de práticas que visam à sustentabilidade.
A partir da permacultura é possível recuperar o solo degradado? É possível aplicar a permacultura considerando modelo agrícola extensivo brasileiro?
João Rockett: Com certeza, porque o que já foi vivo antes pode ser vivo depois. Um exemplo clássico é a água que sai do sistema industrial e do esgoto e que é revertida como água potável. No solo acontece o mesmo.
O primeiro projeto de permacultura foi realizado na Amazônia, na área de uma escola agrícola da periferia de Manaus. Essa escola foi a primeira, no Brasil, a receber o pacote da revolução verde dos EUA. Visitei várias vezes essa escola quando implementaram o processo de recuperação da área. O que se observou ao longo dos anos é que o terreno se recupera facilmente se for queimado e se for impactado por uso de defensivos agrícolas. Entretanto, o espaço com maior dificuldade de recuperação foi aquele em que se utilizavam equipamentos industriais tais como arados. Com isso concluímos que o solo tem dificuldade de se recuperar quando ele é compactado, quando se tira o ar, porque este é a base da vida do solo. Quando a compactação da terra é muito alta, não se tem ar e não se deixa penetrar a água. Sem esses dois elementos, fica difícil recompor a terra.
A permacultura também propõe a criação de ambientes urbanos produtivos e sustentáveis. Como essa metodologia pode ser aplicada no espaço urbano, visando à sustentabilidade das cidades, por exemplo? Há algum projeto nesse sentido?
João Rockett: Todas essas questões são de ordem cultural. A própria palavra permacultura deriva da união de “cultura pemanente”, que iniciou com o processo de agricultura e deu origem à agricultura permanente. Ou seja, criou-se um sistema de permanência para uma nova cultura. Já que estamos dizendo que a nossa forma de vida é insustentável, que ela está impactando o planeta, temos de mudar. Os valores das pessoas em relação ao uso dos recursos naturais estão se perdendo. Então, a mudança de cultura não é só uma questão de manutenção de uso dos recursos ambientais. É preciso perceber que tudo virou um produto a ser mercantilizado.
Chegamos a um ponto limite, mas existem projetos em que as pessoas têm outro modo de produção, inclusive em apartamentos, terrenos baldios. Para isso, é preciso ter uma vontade muito grande para mudar a cultura. O Brasil tem um fator interessante no sentido de que nele quem trabalhava eram o índio e o negro, diferentemente da Europa e dos EUA, onde os colonizadores realizavam os trabalhos. Em nosso país todo trabalho relacionado à mão de obra é desmerecido. Assim, temos um fator mais difícil de lidar no sentido de pensar numa forma de as pessoas produzirem seu próprio alimento.


Desde quando a permacultura é desenvolvida no país? Como vê os investimentos na área e em que aspectos ela tem avançado nos últimos anos?

João Rockett: No Brasil a permacultura é desenvolvida há 15 anos, e houve uma identificação logo que montamos os primeiros centros, que eram espaços para visitação. A nossa intenção era de que a permacultura fosse incorporada com a cultura, e hoje já existem editais de empresas como a Petrobras citando-a como uma linha de princípio para a execução de alguns projetos. Aos poucos se está abrindo espaço para essa discussão e muitas pessoas investem em telhados verdes, em bioconstruções.
O problema ambiental hoje é um problema de consumo. Não basta separar o lixo. As pessoas estão consumindo uma série de coisas das quais não precisam, porque aumentou o poder aquisitivo e a oferta de produtos. Os produtos também são vendidos em embalagens desnecessárias. Quando você compra uma cola Super Bonder, por exemplo, que tem menos de 10 cm de comprimento por 1,5 cm de largura, compra também uma embalagem que tem um palmo de comprimento, porque tem toda uma logística. Da mesma forma compramos um creme dental que vem embalado dentro de uma caixinha de papelão, e já está embalado em uma bisnaga. Temos de diminuir a quantidade de material que estamos colocando no planeta, porque tudo isso vai para a natureza.
A proposta energética da permacultura está atrelada à questão de rever o consumo energético?
João Rockett: De acordo com os princípios da permacultura, o chuveiro elétrico é uma coisa abominável por causa do alto consumo de energia para pouca eficiência. É comum qualquer loja de eletrodomésticos oferecer chuveiros de mais de 10 mil watts, sendo que há dez anos utilizávamos chuveiros de 5 mil watts. Cada chuveiro desses têm condições de movimentar uma pequena indústria. É como se estivesse ligando uma grande máquina. O problema não é que esteja faltando energia; nós é que estamos utilizando mal a energia que temos.
Imagina se fôssemos somar – eu estou fazendo esse cálculo – todos os chuveiros elétricos do país. O consumo é altíssimo, e o valor da transmissão de energia encarece. Então, quanto mais alto for o consumo, mais caro será para levar essa energia. Se abolíssemos o chuveiro elétrico, não precisaríamos de uma hidrelétrica como a de Belo Monte. Projetos como esse são uma agressão ao planeta, às culturas. É a invasão de um espaço natural em prol de uma geração de energia, de uma suposta necessidade de energia, quando, na verdade, teria de mudar a forma de consumo dessa energia.
No supermercado, por exemplo, existem balcões gigantes, sem vidros, resfriando produtos. Eles geram energia 24 horas por dia, sem nunca desligar a máquina, porque ela não está fechada: é como ter uma geladeira em casa com a porta aberta. Temos de mudar imediatamente essa forma de resfriamento. Não discutimos o ponto-chave da questão, que é o consumo exacerbado, ou seja, consumo sem critérios. Existem duas maneiras de uma sociedade mudar a sua cultura ou forma de viver: uma é quando planeja e toma uma atitude em cima do planejamento; a outra é quando se chega no caos, na crise. Eu acho que, do jeito que estamos, chegaremos a uma época de crise.
Precisamos rever o consumo, as construções, projetar as casas para permitir a entrada do sol no inverno, casas que consumam menos energia. Ainda seguimos o caminho da estética, enquanto deveríamos seguir o caminho da funcionalidade, porque a estética só tem custos. É como a moda: quer coisa que gere mais lixo do que a moda? A moda é lixo. A roupa que deixou de usar por um critério “x” passa a ser usada cinco anos depois porque é moda. É um nível de futilidade muito grande para uma humanidade, que já deveria estar em outro ponto, com outra visão de mundo.
O que podemos entender por bioconstrução e como ela se relaciona com a permacultura?
João Rockett: A bioconstrução foi criada pela permacultura, que observou como as civilizações antigas organizam o seu espaço, e a partir daí buscou informação para o seu projeto. Então, as pessoas que estão num ambiente onde há muita pedra irão, obviamente, construir suas casas com pedras; as pessoas que estão num ambiente com muita palha, com muita madeira, irão construir suas casas com esses materiais. Ou seja, o homem é o fruto do seu meio, e esse meio oferta materiais para ele construir. Assim, o prefixo “bio” considera o meio em que o homem está inserido, e a arquitetura vernacular considera essa lógica da arquitetura antiga e tribal.
Todos os povos antepassados tinham uma lógica de construção a partir do material da região, do declínio do terreno, do clima etc., e é isso que a bioconstrução traz para dentro da tecnologia de construção. Chamamos de bioconstrução a construção que tem um olhar pelo ambiente. Nesse processo, planeja-se a forma de construção e os materiais a serem utilizados para retirar melhor proveito de sol, dos ventos, com o melhor conforto térmico e menor consumo de energia.