quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

POR UM CINEMA PÓS-INDUSTRIAL


Os últimos anos têm nos deixado claro que há algo importante acontecendo nesse cinema brasileiro que não esconde mais o rótulo da cerveja nas cenas de bar. Em festivais, as salas estão lotadas, debates longos com centenas de participantes, e há muitos e muitos filmes que circulam no Brasil (e no mundo) em festivais, mostras, dvds, cineclubes, camelôs, internet – e muito raramente em shoppings. Ao mesmo tempo, quando o debate sobre fomento e distribuição aparece, a questão gira em torno de como implementar uma indústria, como fazer a passagem desse cinema para o “verdadeiro” profissionalismo.
Por vezes, cineastas mais experientes dizem apenas: “Vocês podem fazer esses filmes colaborativos e à margem da indústria agora, mas logo terão que entrar no sistema.” Em Tiradentes, este ano, Cacá Diegues dizia: “A economia no cinema é muito frágil, de repente tudo pode acabar.” Algo parece estranho nesses dois momentos. Por uma lado esse cinema existe, se renova ano a ano, circula, conta com centenas de técnicos, público, tem boas críticas e reconhecimento em festivais nacionais e internacionais. Por outro, há um discurso que atravessa o debate, para o qual isso é insuficiente: eles precisam da indústria. Para entender essa esquizofrenia que diz que o que existe deve deixar de ser como é para existir, é preciso algumas palavras sobre o capitalismo, sobre o que foi a indústria no século XX e o que significa falar em indústria hoje.

A era industrial

No final do século XX inicia-se uma mudança decisiva no capitalismo. A indústria, que há dois séculos dominava a geração de valor, deixa de ter o lugar hegemônico.
Lembremos de maneira rápida: a indústria trabalha dentro de paradigmas claros para que transformação da matéria em produto funcione de forma ideal. É necessário colocar os sujeitos em uma linha de montagem em que suas capacidades subjetivas e criativas sejam deixadas de lado – o que não significa dizer que na indústria não haja criatividade (como em Tempos Modernos, de Charles Chaplin – foto). É preciso que, no limite, entre projeto e produto não haja alteração e que tudo funcione em absoluta previsibilidade. Para a indústria, é necessária uma política de escassez, em que as cópias são reguladas; um novo produto significa mais matéria-prima e tempo de linha de montagem em operação; logo, custo.
Dentro da lógica industrial, a organização dos sujeitos em classe estava dada por uma posição econômica, claro, mas também simbólica, ou seja: que lugar o sujeito tem na ordem estética, que lugar ele tem na indústria? Em outros termos: que direito e que possibilidades de experiências sensíveis e subjetivas o sujeito tem nesse processo de transformação da matéria-prima em bens industriais, em produtos? Assim, na indústria há dois lugares claros a serem ocupados: aqueles que são proprietários dos meios de produção e aqueles que operam sem os meios – os trabalhadores. Enquanto, na ponta da cadeia produtiva, o dono do capital opera mimetizando o próprio capital – desgarrado, em fluxo, sem lugar definido – o trabalhador vive no espaço fechado, no salário definido, no gesto repetitivo, no cartão de ponto. Não é só a falta de dinheiro que o afasta do capital, mas todo o campo simbólico. Assim, mais do que um sistema de produção, a indústria é um regime discursivo e estético que opera no sensível, no dizível e no visível.
Resumindo: na era industrial o trabalhador não opera criativamente, está distante dos meios de produção e deve ser colocado em uma linha marcada pela previsibilidade do processo. Os meios de produção são marcados pela escassez e as classes são organizadas pelas possibilidades econômicas e sensíveis.
A era pós-indústrial
O que acontece na atual fase do capitalismo é um deslocamento do lugar do valor com fortes implicações nas relações que os poderes estabelecerão com os vivos, com a natureza da mercadoria, com a divisão de classes e com os meios de produção. No capitalismo pós-industrial (imaterial, cognitivo) não é mais no produto/matéria que se encontra o centro do valor, mas no conhecimento, na forma de se organizar e modular uma inteligência coletiva. Para se produzir valor não se depende apenas da força de trabalho física dos indivíduos, mas da força de invenção (Lazzarato) das vidas. Ou como escreveu o Yann Moulier Boutang “o centro de gravidade da acumulação capitalista mudou” e a centralidade do valor é imaterial.
Por Cezar Migliorin, Revista Cinética

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

A QUESTÃO DA PÓS-MODERNIDADE TENDO COMO ENFOQUE AS FAVELAS

Estética das favelas. A questão que se discute já não é mais, felizmente, relativa à remoção e relocação dos habitantes das favelas para áreas longínquas da cidade. Hoje, o direito à urbanização é um dado adquirido e incontestável, ou seja, a questão já não é mais simplesmente social e política mas deve passar obrigatoriamente por uma dimensão cultural e estética. Sempre houve um tabu, em se tocar nas questões culturais e principalmente estéticas das favelas, mesmo se sabendo, que o samba e o carnaval (e várias outras festas populares e religiosas), ícones do nossa cultura popular, se desenvolveram e possuem ligação direta com esses espaços, e que, ao mesmo tempo, várias favelas foram removidas por serem consideradas "antiestéticas". Em contrapartida, inúmeros artistas, tanto da própria favela quanto da dita cidade formal, ou até mesmo estrangeiros, se influenciaram e buscaram inspiração nessa "arquitetura" das favelas. Além de fazer parte do nosso patrimônio cultural e artístico, as favelas se constituem através de um processo arquitetônico e urbanístico vernáculo singular, que não somente difere, ou é o próprio oposto, do dispositivo projetual tradicional da arquitetura e urbanismo eruditos, mas também compõe uma estética própria, uma estética das favelas, que é completamente diferente da estética da cidade dita formal e possui características peculiares. Do caso mais extremo onde a favela era removida e seus habitantes relocados em conjuntos habitacionais cartesianos modernistas, até o caso mais brando atual, onde os arquitetos da dita pós-modernidade passaram a intervir nas favelas existentes visando transformá-las em bairros, a lógica racional dos arquitetos e urbanistas ainda é prioritária e estes acabam por impor a sua própria estética que é quase sempre a da cidade dita formal. Ou seja, a favela deve se tornar um bairro formal para que uma melhor integração da favela ao resto da cidade se torne possível.